Os prazeres da psicanálise
Por Luiz Carlos Maciel (*)
(Cenário: bar movimentado, da moda, de preferência em Ipanema. Garçons lentos e displicentes. Os dois personagens, ELE e ELA, depois das dificuldades presumíveis que podem ser inventadas pelo diretor, conseguem uma mesa. Esperam duas horas por um garçom que já passou por eles no mínimo duzentas vezes e o diálogo se inicia).
ELE — O que é que você quer? Chope?
ELA — Por quê deveria querer chope? Pedir chope aqui é um tanto compulsivo. Você não pede chope por uma escolha livre: é uma compulsão. Coisa típica da neurose obsessiva. Você sabe muito bem que não é meu caso, querido.
ELE — Está bem. Você já passou duas horas com seu psicanalista, hoje. Será que não pode mudar de assunto?
ELA — Fique sabendo que o auto-conhecimento é o começo da cura. Depois, não tenho pressa em beber nada. Não sofro de nenhuma regressão à fase oral, como você.
ELE — Regressão a quê? Que diabo é isso? Não estou sentindo nada!
ELA — Está, sim. Está.
ELE — Claro que não.
ELA — Claro que está. Você é que não sabe.
ELE — Ué, não estou sentindo nada!
ELA — Pior. Muito pior. Não sente por causa de seus mecanismos de defesa. Você nunca ouviu falar de couraça caracterológica?
ELE — Nunca. O que é isso?
ELA — É uma pena.
ELE — Por quê?
ELA — Você está doente, meu amor. Muito doente.
ELE — (um tanto alarmado) Não!
ELA — (com firmeza) Doente, sim. Muito doente. Por que você não vai ao Dr. Hauser? Posso marcar hora para você, amanhã.
ELE — E quem é o Dr. Hauser?
ELA — Você está cansado de saber quem é o Dr. Hauser. Pergunta por causa de outro mecanismo de defesa. Seu caso está me parecendo mais grave do que eu pensava.
ELE — Está bem. Mas quem é ele.
ELA — Meu analista, é claro. Você vai gostar muito dele, querido. É um homem maravilhoso. Bonito, inteligente, culto, atlético, divino. Se eu já não estivesse no meu quinto ano de análise, poderia pensar até que é um semideus. Mas não. Já sei que é um ser humano como qualquer outro, sujeito aos mesmos erros e defeitos. Ele mesmo fez questão de deixar isso bem claro. Não é genial?
ELE — O que é genial?
ELA — Ora, o próprio Dr. Hauser dizer que é um ser humano. Só um homem divino diria isso.
ELE — Eu também reconheço que sou apenas um ser humano.
ELA — Mas você não é o Dr. Hauser. Não desanime nas primeiras sessões. suas resistências serão muito fortes, entende? Isso também aconteceu comigo, no começo. Mas o Dr. Hauser é um mestre no manejo da transferência e, depois de algum tempo, você vai sentir—se outra pessoa.
ELE — Mas eu não quero me sentir outra pessoa.
ELA — Coitadinho de você, meu bem. Num instante o Dr. Hauser vai convencer você de que você quer ser outra pessoa. Claro que quer.
ELE — Mas que outra pessoa, meu Deus?
ELA — Uma pessoa mais livre, mais independente. Sem essa dependência neurótica que você tem de mim, por exemplo.
ELE — (esmagado) E eu tenho dependência neurótica de você?
ELA — Claro. Qualquer pessoa com experiência de análise percebe isso logo de cara.
ELE — Você está quase me convencendo.
ELA — Tem uma fixação oral, também. E é um obsessivo-compulsivo típico. Já reparou essa mania por ordem e limpeza que você tem? Já? Aposto que não. Você não repara nada porque seu mecanismo repressivo tomou a forma da inversão. Você se acredita sadio quando está horrivelmente, miseravelmente, talvez até irrecuperavelmente doente.
ELE — (totalmente aterrado) Puxa! Acho que preciso beber alguma coisa. Posso pedir um chope?
ELA — Claro. Peça um para mim, também.
(*) Luiz Carlos Maciel nasceu em Porto Alegre (RS), no dia 15 de março de 1938. Aos 17 anos, ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, onde tornou-se Bacharel em Filosofia, em 1958. Fez teatro amador e dirigiu peças, enquanto estudava. Em 1959, foi agraciado com uma bolsa de estudos na Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Conheceu Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso, e outros grandes artistas da Bahia e do Brasil ainda em sua juventude. Glauber o fez ator principal de seu curta-metragem "A Cruz na Praça". Em 1960, nova bolsa de estudos, agora da Fundação Rockefeller para o Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde estudou direção teatral e playwriting durante dezoito meses. Voltou a Salvador como professor da Escola de Teatro. Nesse período, dirigiu diversas peças teatrais. Em 1964 mudou-se para o Rio de Janeiro, tendo lecionado no Conservatório Dramático Nacional e trabalhado em jornais locais, entre eles "Jornal do Brasil", "Última Hora", e na revista "Fatos e Fotos".
Foi um dos fundadores do jornal "O Pasquim", em 1969, onde editava duas páginas dedicadas ao Underground — atividade que lhe valeu apelidos como o de "guru da contracultura" e outros mais. Foi autor de roteiros e diretor de cinema. Em 1970, juntamente com a maior parte da equipe do "Pasquim", foi preso pelas autoridades militares da época e passou dois meses trancafiado na Vila Militar, no Rio. Editou o semanário contra-cultural "Flor do Mal" e foi diretor de redação do semanário "Rolling Stone". Durante 20 anos trabalhou na TV Globo, exercendo funções de roteirista, redator, membro de grupos de criação de programas e de analista e orientador de roteiros. Em 1979, colaborou no semanário "Enfim" e no ano seguinte na revista "Careta", editados por Tarso de Castro. Dirigiu, em 1984, o show musical "Baby Gal", com a cantora Gal Costa, e a peça de Millôr Fernandes "Flávia, Cabeça, Tronco e Membros". No ano de 1987 volta a lecionar, principalmente cursos de roteiro, no Rio, e participa de conferências pelo Brasil. Em 1991, dirige "Boca Molhada de Paixão Calada" e "Brida", de Leilah Assumpção e Paulo Coelho, respectivamente. Em 1998, seu roteiro para um filme longa metragem "Dolores" foi agraciado com premio concedido pelo Ministério da Cultura.
Livros: "Samuel Beckett e a Solidão Humana"; "Sartre, Vida e Obra"; "Nova Consciência"; "Negócio Seguinte"; "Anos 60"; "Eles e Eu — Memórias de Ronaldo Bôscoli" (com Ângela Chaves), "Geração em Transe, Memórias do Tempo do Tropicalismo", "Dorinha Duval, Em Busca da Luz", (com Maria Luiza Ocampo) e As quatro estações.
Texto extraído do jornal "O Pasquim", exemplar nº. 02, editado em julho de 1969, pág. 6.