Relógio ponto - crônicas do serviço público
O tempo vem sendo valorizado cada vez mais ao longo da história. Mas não o tempo abissal o longo tempo, mas aquele esmiuçado, esquartejado. Das máquinas de medir o tempo, o relógio, como conhecemos, é recente. O ponteiro do minuto começou a ser empregado em 1670 e em 1765 a dupla ganhou o segundeiro. Bem antes disso a menor fração era o dia. O sábio olhava as estrelas e seus ciclos. Os registros eram astronômicos.
Hoje destacam-se o tempo do lazer, dos filhos, das necessidades básicas, dos estudos e entre outros o do trabalho. Pensemos. Esse tempo evoluiu para a redução da jornada. A carga horária interminável do final do século XVIII, na crista da onda da revolução industrial, diante dos teares não se aproxima da moderna jornada de 40, e mais recentemente 36 horas, regiamente cumprida.
Essa jornada precisou ser registrada, e o grande instrumento foi o relógio ponto. Este automatizou e impessoalizou a ação de marcar as entradas e saídas dos trabalhadores do seu local de trabalho.
Qualquer coisa pra além de inserir o cartão de cartolina, baixar a alavanca e ouvir uma espécie de tilintar, estava fora de cogitação.
A máquina de registro, pelo esforço humano de baixar a alavanca, destacava os números tipográficos, que disparavam o horário sobre o papel, tendo entre estes uma fita com tinta.
Tecnologias foram sendo associadas e os equipamentos melhorados. Os crachas de identificação assumiram dupla função, além da identificação com ele era possível, como se fosse um passaporte, ingressar nos ambientes restritos ao trabalho. Mas o estado da arte é a biometria.
Trabalho no setor público. No corredor que dá acesso a sala onde desempenho minhas funções, em frente a porta, foi instalado o relógio ponto. A mais nova tecnologia. Aquele ruidoso foi superado, primeiro por um registrador imperceptível e atualmente por um com uma enebriante vos interativa feminina que a todo o registro agradece: " Obrigado". Se o registro não se consumou: "Tente Novamente".
Acompanhando essa inovação, percebi que na medida que os colegas internalizavam a nova recepcionista da chegada e da partida, fui colecionando alguns comentários proferidos nesse mágico momento: A mais usual de todas era a resposta "de nada". Outros mais elaborados, "de nada, fui!".
Fui questionando os colegas sobre a Ana Maria. Ela já tinha nome. Um dos colegas com a testa franzida e o punho em riste me disse: "Tem mais que me agradecer, pois boto o dedo nela todo o dia." Outro defendia que ela devia dizer "obrigado por ter vindo você é muito importante para empresa". Outro ainda "Obrigado, volte na segunda".
Mas teve uma experiência que me chocou. Foi em uma tarde. Era pra mais de 14 horas. o silêncio dominava o ambiente. Pelo corredor um característico e marcante pisar de salto alto provocou a Ana Maria: "obrigado". Olhei o relógio na tela do computador. O horário quatorze horas e dezesseis minutos.
A tarde se desenrolava especialmente calma e sem ruído. Novamente ouvi aquele marcante pisar pelo corredor e a Ana Maria: "Obrigado", eram dezesseis horas e oito minutos. Conclui, alguém chegou depois e saiu antes. Avisei aos colegas, que não queria guardar segredos que não me pertenciam. Nunca mais ouvi aquele ruido de salto no corredor.
O tempo foi passando a copa do mundo no Brasil desenrolando-se num estrondoso sucesso, e presença da Ana Maria estava assimilada na rotina de todos. Até que na manha da segunda feira do dia 14 de julho de 2014, os colegas estaqueavam seu olhar diante da Ana Maria, entre atônitos e mudos ouviam-na responder com forte sotaque alemão: "danke",
Desde então, se espera qualquer coisa, no registro do ponto.