CARINHO DE VÓ
e souza
(Este texto faz referência ao telefonema que fiz à minha avó materna Elcy, há 34 anos)
- Oi vó, tudo bem com a senhora?
- Quem é?
- Eu vó!
- Eu quem?
- Vó, eu sou seu único neto, te ligo, te chamo de vó e a senhora pergunta: “quem é?”, “eu quem?”
- Você queria que eu perguntasse o quê, se você era o Batman?
- Vó a senhora gosta do Batman?
- Claro que não, na minha época ele usava cuecas por cima das calças! Só to ganhando tempo para me lembrar do seu nome.
- Vó, a senhora esqueceu meu nome? Seu único neto, lindo, maravilhoso!
- Eu te conheço muito bem e sei que você não é nada disso que está dizendo (risos).
- A senhora está ocupada?
- Lógico que estou, ou você acha que eu fico aqui contando estrelas?
- Sei lá, bem que podia estar fazendo um bolinho de chuva, ou um bolo de bananas que só a senhora sabe.
- Menino, você só pensa em comida, e se pensa só nisso, quando come pra onde vai tudo?
- É que suas receitas são as melhores.
- Eu sei, mas estou lendo.
- Lendo? Que legal, e qual é o nome do livro?
- Menino, você faz tantas perguntas que eu acho que você está escrevendo um livro. To lendo jornal.
- Legal, e por falar em jornal, preciso te contar uma coisa. Sabe aquele jornal novo o Segundamão?
- Sei sim, é aquele que só tem duas folhas e faz as coisas de graça, por isso que não vai pra frente.
- Vó, no começo é assim mesmo, hoje é pequeno, amanhã quem sabe?
- (risos) Você era pequeno, passou o tempo e continua pequeno.
- Vó, não estamos falando da minha estatura.
- Sei. O que é que tem?
- Eu vou trabalhar lá, é muito legal né?
- (silêncio)
- Vó, a senhora ainda está aí? Tudo bem?
- Tudo e você?
- Vó, o que foi?
- (silêncio)
- Vóóóóóóó?!
- Fala.
- Já estou falando, vou trabalhar na Editora Haple.
- Então você quer me dizer que vai sair daquele emprego no escritório do Dr. Antonio, para trabalhar num lugar com o nome de Segundamão? Não acredito! Eles fazem tudo de graça, como é que eles vão te pagar?
- Fiz um acordo.
- Que acordo? Que acordo muleque?
- Eu queria ir para um jornal, é mais a minha cara.
- Sua cara, sua cara. Seu avó também queria ser Deputado, Presidente da República, dono do Pão de Açucar, e nem por isso largou o emprego de caminhoneiro.
- É que ele gostava de ser caminhoneiro.
- Nunca gostou! Mas era o que punha pão na nossa mesa!
- Vó, os tempos são outros.
- Então porque você não procurou um jornal de verdade?
- Ele é de verdade.
- Quanto você vai ganhar nesse lugar?
- Bem, no início vou ganhar um pouco menos, mas...
- Mas você é um muleque burro mesmo, sai de um lugar que ganha bem, para ir a outro lugar que nem sabe como é, e vai ganhar menos? Vou contar para as minhas amigas que tenho um neto, um único neto gênio, e elas vão rir muito.
- A senhora não teria coragem.
- Não?! Então paga pra ver, aliás, não precisa pagar não, lá nesse lugar vai ganhar pouco e vai fazer falta. Eu queria ter um neto Doutor, um advogado, médico, engenheiro, como seu pai, sua mãe, suas irmãs e até seus cunhados. E o que é que eu tenho? Um neto gênio!
- Vó, só ser doutor não quer dizer nada se você não estiver feliz com o que faz. Nada será feito a contento, com amor, dedicação...
- Só um gênio pra pensar assim. Espera! Eu disse pensar?! (gargalhadas).
- Vai dar certo, eu gosto do que vou fazer.
- E o que é que o gênio aí vai fazer?
- No início a gente faz de tudo, depois vai melhorando.
- Você está me dizendo que vai aprender tudo de novo, assim como quando eu te ensinei a andar?
- É isso aí vó, não é legal?
- Não, não é legal, só eu sei o tempo que eu gastei tentando te ensinar a andar e você nunca aprendeu!
- Não fala assim vó, eu sou um cara legal. E eu aprendi a andar cedo. Eu ainda vou escrever um livro.
- Vai é? Você já plantou uma árvore e já teve filho?
- Plantar já plantei, mas filho, ainda não.
- Isso vai demorar... Aposto que o nome do seu livro vai ser “como fazer sua vida andar para trás num só tempo” (risos).
- A senhora é muito divertida.
- Será que é porque eu tenho a cabeça no lugar?
- Posso passar aí amanhã, to com saudade, posso?
- Meu geninho preferido, vem hoje, eu já fiz o bolo que você gosta, também to morrendo de saudade, desliga logo e vem, seu avô vai preparar a janta e eu não vou contar nada pra ele que você mudou de emprego se não ele não vai deixar você entrar aqui.
- Será vó?!
- Brincadeira filho, aquele véio ama mais você do que a mim. Desliga logo isso muleque e vem correndo!
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