Do outro lado da ponte da vida*
Manipulando o velho aparelho Morse, registrando as "licenças dos trens", a ansiedade pela rendição era o bálsamo da ansiedade de um dia de trabalho com as chegadas e partidas dos trens. No auge dos meus 23 anos de pouca vivência e de sonhos a conquistar, era a época do apogeu da ditadura militar. A alienação era praticamente coletiva. Parecia um mundo inimaginável e sem corrupção, sendo assunto desconhecido pela maioria. Reclamávamos sim, sobre o custo de vida e a inflação.
Passados mais de 40 anos, resolvi reviver o passado, este espaço tão importante em minha vida. Foi como penetrar no túnel do tempo e reviver todos esses momentos, sentado na mesma posição de antes, com alguns poetas e escritores, no mesmo Bar do Gordo que em nada mudou, apenas de proprietário (falecido no mês fev/2010). Olhando para os arranha-céus e recordando as noitadas e o tempo perdido... Fiquei observando o desfile de gente com o sofrimento estampado no rosto, pessoas humildes, sem anseios e esperanças.
O cenário é o mesmo, com novos protagonistas e de tipos folclóricos diferentes. Dezenas de vendedores de relógios, CDs e mais bugigangas, estas agora importadas do Paraguai. Uma velha mulher usando um minúsculo short tenta chamar a atenção para suas guloseimas, as vendedoras de loterias desejando-nos boa sorte. Os aposentados lamentando todos os anos perdidos e injustamente não reconhecidos com seus salários de miséria, jogados a própria sorte.
Hoje, sabemos da existência de corruptos que dilapidaram nosso patrimônio, antes tão desconhecidos na época do decantado milagre econômico. As rugas, minha barba branca, a preocupação com o futuro, o medo, a violência desenfreada... denunciam, assim, que tudo mudou na minha vida e do meu Recife. Foram assim alguns lampejos de saudades de um mesmo cenário, do outro lado da ponte e da minha história, irreversivelmente tão próximo e tão distante dos amigos nunca mais vistos.
* Extraído do livro "Miscelânea Recife II", pp. 27-8.