Pardal Espevitado

Sempre o canarinho da terra cantava em nosso jardim, nos intervalos em que comia o alpiste e a canjiquinha. E agente não dava bola. Então um dia, um pardal meio espevitado, que vinha atrás do miolo de pão que a gente também jogava pra eles, aproximou-se do canarinho e disse, olhando pra gente com certo brilho nos olhos e uma indisfarçável ironia no movimento do bico:

“Holocausto, como se houvesse apenas um. E o que se agasalha há tempos em Gaza? Ou o que se repete perpetuamente na África? O que se dissemina com o uso irrefreável das drogas a partir da poderosa contribuição, em muitos lugares, do poder público diante das enormes vantagens financeiras decorrentes de uma proibição sistemática e irracional do consumo?”

Pensamos logo em proibir a entrada daquele pardal no jardim. Não tanto pelo que disse, mas pela forma meio jocosa ou desrespeitosa com que o fez. Mas e os outros passarinhos? As cambaxirras, os trinca-ferros, os azulões, não tão comuns como os canários, as rolinhas e os pardais que sempre vinham. E o tiê-sangue, que aparecia raríssimas vezes, com o seu vermelho e preto que nos lembra agora a impiedosa derrota de 7 a 1?

Preferimos então fingir que nada ouvimos ou ouviríamos, para não nos privarmos desse conforto espiritual. Apesar de tudo.

Rio, 15/07/2014

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 15/07/2014
Reeditado em 15/07/2014
Código do texto: T4882536
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