E você?
[...]
Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitarás
Cecília Meireles, Desenho (fragmento)
Lanchonete (porque não poderia ser um bar. Malgrado a possibilidade de encontrarmos pessoas desse naipe [“naipe”: termo agradável e caro a um ex-amigo; ex-amigo? Sim, mas por conta de uma besteirinha – tanto da minha quanto da parte dele], há, decerto, se bem que em quantidades mínimas, merecedoras do título [“título”: sim, “título”. Eu até ia dizer “rótulo”, mas este segundo substantivo soa pejorativo e desmerecedor; ele simplesmente passa uma impressão de algum carimbador maluco de plantão e eu, como já tenho fama de chato, não quero – não ainda – passar essa ideia ao caríssimo leitor]. O gostoso dessa vida – vida corrida, vida dividida, vida cansada, atribulada, vida vivida – que a gente leva são os flashes – esses instantes marcados por alguns eventos que envolvem pessoas – que parecem, aqui e ali, concorrerem àquelas nossas lembranças que, grosso modo, assim mesmo, muito brevemente, com a rapidez de um suspiro [suspiro: um suspiro que ecoe na Eternidade, tramitam em nossos corações certos de se tornarem divisores de água em nossa vida. Pois é... O papo tá bom, não? Mas eu tenho que ir. Ir direto ao assunto. Tenho que parar de ficar me explicando a toda hora, a mim mesmo, ao meu leitor, a quem quer que seja. Mas... Ocorre, Senhoras e Senhores, que não consigo, sabem? Tem hora que não dá, que é complicado mesmo, entendem? Tem hora que a coisa é deixar rolar mesmo, como naqueles encontros em que tudo pode acontecer, entendem? Pô, amizade... Sabe aquele encontro em que o moço e a moça não se conhecem direito, só trocaram algumas palavras por e-mail, ou no trem, ou no ônibus? Então... É, pois, ao meu ver, por aí mesmo, sabe? Er...)
E, já que tenho que ir... E que ir direto ao assunto...
Voltemos à lanchonete. Afinal, se você, curioso para saber do que vou falar nesta minha crônica baseada em fatos reais (lembrando a Vossa Senhoria de que realidade é toda uma sequência de fatos, eventos, acontecimentos em torno de uma época, não? Ou seria o nome disso “história”?).
Cheguei lá. Hora do almoço de ontem. (“Ontem” que dia? Que ano? Que hora? Quem é que tá escrevendo isso?) “Já escolheu, Senhor?” “Não, Flor, não. Ainda estou a pensar no que fazer. Já já eu te chamo, ok? Fique tranquila, tá?” Er... Numa crônica normal, um texto desses bem que viria a calhar, não? Coisinhas normais, pessoas normais, ambiente normal... Pondé seja minha testemunha: os “normais” devem ter algum problema sério. Não é possivel... Pois quem disse que essa minha crônica é algo normal? Por que deveria sê-lo, quando EU não sou “normal”, isto é, vivo me apresentando como qualquer outra pessoa, pra mode agradar a esse e aquele (agrado, sim senhor, a pessoas tão “anormais” quanto eu. E agradeço, via de regra, ao meu leitor. Principalmente quando o lembro disso e ele não se ofende. Ué, vocês ainda não viram aquele aforismo – bacana, bacana mesmo – que circula pelo facebook, com essa mensagem “Ser normal é a meta dos fracassados”? Pois é...)
Pode até parecer que estou escrevendo um monte de bobagens para ater meu leitor até um momento final em que o desfecho se revela algo insólito, comum ou o diabo que seja. Ocorre que, devo lembrar a todos disso, o insólito é, quase sempre, o comum em meus textos. E como! Sei lá, parece que eu nasci com isso, sabem? Parece que algo me compele a escrever assim, a rodar, rodar e... Ta-da! Alguns elementos, perdidos durante a leitura – ou mesmo ocultos nesta espécie de “fuga”, formando o que eu gostaria, ao menos por hora, de chamar de “código” ou “mensagem oculta” – reaparecem, talvez mais ou menos com variável rapidez, a alguns leitores meus. “Fluxo de consciência”, é isso o nome disso? Nunca parei para pensar. Mas, ao que me consta, neste gênero textual, não há tempo para, como diria Nathalie Goldberg, em seu “Escrevendo com a alma”, editar seu texto; logo, vírgulas, pontos finais, enfim, tudo o que faz parte das normas de pontuação parece dar lugar ao texto em si, de modo que o autor simplesmente passa ao papel o que lhe vem à mente, na ordem e na velocidade que aparece. Não consigo escrever assim, tão rápido, ignorando a pontuação. Sem pontuar, pô... qualé? Meu texto ficaria, já por aí mesmo, complicado, beirando à ilegibilidade. Pois é...
Eu me lembro que comecei esta crônica com uma lanchonete. Eu estava lá, sim! Ela apareceu para mim. Eu a vi ali, Gente! Eu a vi ali, sim. “Cacete, Wellington, quem é que você viu? Fala, meu! Fala, diacho!” Tá, tá... Vou falar. Era uma moça que não dava a mínima pra ninguém. Bonita, sim. Mas bastante reservada. Nada de sorrisos a estranhos, a pessoas com quem ela nunca tivera nenhum tipo de contato, sequer um cumprimento. Bela, séria e jovem, talvez eu já tenha dito isso, fazer o que se repito?, algo nela me chamava a atenção. “Mas o que?” Taí! Nem eu saberia dizer... Pensei comigo que gostaria demais de falar com ela, levar um lero, uma conversinha, sei lá, trocar uma ideia. “Ah, diacho... Deixa pra lá, homem. Ela, no máximo, irá te responder com um leve balançar de cabeça, negativo, repelindo-te. Esquece. Tente com outra mulher.” Pensei isso comigo mesmo. Foram vinte minutos entre esse meu olhar fixo a ela, com alguns momentos em que eu tentava disfarçar. Ela sabia que eu olhava para ela, caramba, eu sentia isso, sabem? Eu simplesmente sentia isso. Ela? Nem aí... Reitero: foram vinte minutos entre olhar fixamente para ela e nada acontecer.
Levanto-me. Vou embora. Passo por ela. Finjo que não a vi. Vou embora.
Fim da crônica.
Rá, rá, rá... Fim da crônica!
Peraê... “Ela tá vindo atrás de mim...”
Ela, com efeito, veio atrás de mim. “Você esqueceu este livro de Susan Langer. ‘Filosofia em nova chave’. Adoro ele. É fantástico.”
Não acreditei. Como era possível? Como? Justo ela?
“Ah, obrigado, Amada. Obrigado mesmo. Não posso perder esse livro. Nem sei por que decidi tirá-lo de minha estante. Livros são muito importantes e queridos para mim.”
Papo vai, papo vem, eu disse a ela que, num daqueles dias, talvez o anterior, não me lembro bem, eu havia comprado “Introdução à Modernidade”, de Henri Lefebvre.* Edição antiga e envelhecida. E cara, um precinho bem pouco convidativo. E que eu só levava comigo esse exemplar de “Filosofia em nova chave” porque algo, num dos “Prelúdios”, como o pensador marxista francês, morto há vinte e três anos, se referia aos capítulos do referido livro, tratava da questão dos símbolos na cultura humana. A forma como, logo no início desse prelúdio tratava dos símbolos, me fizera lembrar do livro de Langer. E, como eu me identifiquei com aquilo que lera, resolvi buscar uma leitura de ambos, para, num segundo momento, cotejar os dois. E tirar alguma conclusão daquilo. “Mais tarde, quiçá daqui uma semana, irei ‘revisitar’ ‘O poder do mito’, de Joseph Campbell.” “Puxa! Você tem os mesmos gostos que eu! Bem, apresso-me em fazer este julgamento de ti, perdoe, mas... É, ao menos nesse tão curto espaço de tempo em que conversamos, a maior impressão que tenho de ti.” Aquela conversa me interessava, sabem? Eu já tava começando a sentir meu coração bater mais forte. “Uma moça inteligente, jovem, bonita... Essa é pra casar!”, pensei comigo. Trocamos e-mails. Falamos bastante dos três livros. Até marcamos de nos reencontrarmos, talvez no sábado. Desejamos dar início a um grupo de estudos. Onde – e como – é que essa história vai acabar, ah... Aí, Gente Fina, não me foi revelado. Mas eu tenho um palpite. E você?
NOTA
* LEFEBVRE, Henri. Quinto Prelúdio -- O que diz o sol crucificado? In: Introdução à modernidade. Trad. Jehovanira Chrysóstomo de Souza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p. 113-120. (Série Rumos da Cultura Moderna, VOL. 24)