Água e poder

Dona Maria é empregada doméstica. Mora com a filha, o genro e três netos num barracão alugado no alto do morro da Penha. Sua caixa d’água é de 250 litros e há seis dias está seca, por causa do racionamento.

O genro de Dona Maria é servente de pedreiro. Sua mulher não trabalha, fica em casa o dia inteiro com um dos filhos, que é paralítico. O barracão onde moram é muito pequeno, cheio de buracos nas paredes e no telhado. Ratos e baratas fazem a maior festa.

Do barracão de Dona Maria dá para ver a mansão de Dona Jaciara, mais ou menos na mesma altura, cercada por muros, guaritas, cães ferozes e seguranças armados. Dona Jaciara é socialite, ou seja, não faz nada: vive de renda. Ou melhor, faz sim: dá festas borbulhantes, que enchem páginas e mais páginas do caderno 'Sociedade' do jornal 'A City'.

Dona Jaciara está agora conversando com seu amigo Jade – o promoter mais badalado da high society – sobre a próxima festa que dará em sua mansão. Seu reservatório de água é de 10.000 litros, e está sempre cheio, porque ela compra água de uma empresa autorizada, que é de um primo do seu marido. O custo é alto, mas Dona Jaciara não se importa. O que menos a preocupa é dinheiro. Tanto é que, neste exato momento, três caminhões pipa estão enchendo sua piscina...

Dona Maria não tem mais condições de comprar água mineral. Está preocupada, principalmente com as crianças, que têm sede e andam sujas, fedidas, cercadas de moscas varejeiras. Seu genro quer comprar uma caixa reserva e uma bomba d’água, mas para isso vai ter que pegar dinheiro emprestado.

Mais três dias sem água na casa de Dona Maria. A situação é desesperadora. Uma vizinha que tem caixa reserva ajuda um pouco com água para beber, mas já demonstra má vontade.

Finalmente Dona Maria e o genro decidem pela compra. Quando o bairro estiver sendo abastecido, a caixa reserva, que ficará no chão, encherá junto com a caixa principal, e nos dias sem abastecimento, a bomba levará água de uma à outra quando precisar.

Dona Jaciara está agora relaxando em sua banheira de hidromassagem. Está muito feliz com a perspectiva da nova festa. Tem que pensar nos detalhes... Quer tudo perfeito.

Dona Maria e sua família aguardam a chegada da água, mas ela não chega. Sua rua é a última do morro. Nas ruas de baixo a água chega, mas pouca. Na companhia de saneamento dizem que a rua de Dona Maria não consta no sistema. Como assim? Informam que vão verificar o que aconteceu.

Em outras partes da cidade a água também não chega. Tem gente que está há doze dias sem água. “Vocês precisam ter paciência”, pedem as autoridades, mas os moradores não têm. Não aguentam mais. Aos poucos se movimentam, pegam pneus velhos, gasolina, porretes... Dizem que vão fechar as principais ruas e avenidas da cidade. Estão desesperados.

Enquanto isso, os cães de Dona Jaciara tomam banho no quintal de sua mansão. Ela tem muito orgulho de seus cães. São todos de raça, registrados, valem uma fortuna.

O marido de Dona Jaciara é bilionário, dono de quase metade da cidade, mas quer mais, mais, MAIS... Por isso está investindo no negócio da água. Vai rachar de ganhar dinheiro... Daqui a pouco ele chega. Dona Jaciara já ouve o barulho do helicóptero. Seus filhos também vêm; menos Luísa, que está no Canadá.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 12/07/2014
Código do texto: T4879425
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