Pensamentos de um Rei Padecente

Músicas serão feitas sobre esse dia, me foi dito. A verdade é que eu não sei bem o que significa ser o tema de canções.

Os sinos lá fora ritmam os golpes de ferro contra a madeira da grande porta à minha frente. Sinto-os chegar perto a cada segundo. Sou um leão covarde, me escondendo atrás de minhas muralhas, defendendo-me com nada mais do que promessas de glória.

Os gritos ao fundo não param. São meus homens perecendo em poças de seu próprio sangue, e para quê? Honra? Legado? É isso do que são feitas as memórias, mas e os homens? Eles não são sangue e carne, não são do que foram feitos, mas o que fazem de si mesmos. E desistem de tudo por alguma razão que me escapa, agora que contemplo a morte face a face.

Toda a minha vida passa pelos meus olhos e recordo todos os meus desejos que inspiraram décadas de intriga, rivalidades e guerra: terras, posses... E, sobretudo, o poder sobre a vida e morte, a glória e o exílio, a escolha para o bem e o mal de qualquer um que pisasse em meu domínio. Esse é um poder que ninguém devia possuir.

Do nascer ao por do Sol, por anos, tudo o que fiz foram escolhas, mas quando a escuridão descia sobre o mundo, elas vinham me assombrar. O dia brilhava com o ouro e a noite era desenhada pelas silhuetas das vítimas da injustiça. Elas me esperavam, e finalmente vieram me buscar. A oportunidade de redenção, se é que tive alguma, está fora de meu alcance agora.

Como tambores, o choque dos soldados lá fora contra a minha porta é contínuo e ressoa em meu peito. Meu único desejo é que esse desespero vá embora, não assole mais meu coração e responda minha última pergunta: por que os homens vivem e morrem lutando por poder? As jóias enfeitam a face do homem ou mulher que sentarem no trono, mas nada consertará suas almas orgulhosas.

Essa deve ser minha resposta, portanto – sempre escondida dentro de mim, de certa forma. O orgulho coloca o ser humano em correntes e o faz ajoelhar-se sob seus comandos. Foi o orgulho que me trouxe aqui, sentou-me nesse trono, hasteou a bandeira que queima lá fora e deixou-me ditar as regras neste pedaço de terra no meio do nada. Eu deixei que fizesse isso comigo.

No entanto, orgulho e tudo o que ele me trouxe não me valem de nada quando a morte bate a porta.

Ele me deu poder e o tirou de mim para, na hora da morte, me ensinar o quanto o próprio orgulho é inútil e decadente.

Letícia Gama
Enviado por Letícia Gama em 08/07/2014
Reeditado em 18/06/2015
Código do texto: T4874437
Classificação de conteúdo: seguro