Com Dona Lúcia
Domingo de manhãzinha, vou entregar à Dona Lúcia a sua carteira, que encontrei caída na garagem, logo atrás do seu carro. A desatenção de Dona Lúcia já é célebre, de modo que o ocorrido não me espantou. Houve outros tantos episódios como esse ao longo dos quatro anos que alugo um quarto nos fundos da sua casa. São coisas da idade, reflito.
Dona Lúcia se assusta quando entrego a carteira, pois não tinha dado pela falta, e fica pensando no que teria acontecido se ela tivesse caído do lado de fora da garagem. Enquanto se recrimina, começa a me contar alguns dos dramas que está vivendo. Diz que se arrependeu de ter começado a fazer obras na casa, que já não tem muito dinheiro para isso e que os homens não estão fazendo o serviço direito. E me convida a entrar para ver de perto algumas das coisas que ainda precisam ser feitas. Eu ainda não tomei o café da manhã, mas aceito o convite.
Ela me mostra o que será pintado em seu quarto. Tenta entrar no quarto do irmão, que saiu para ir à missa, mas está trancado. O irmão mora ali sozinho e não deixa que ninguém entre. Também não quer que pintem nada. Dona Lúcia começa a falar então da dura convivência que tem com o irmão. Ele tem um temperamento difícil, os dois discutem com frequência e eu consigo ouvir lá do meu quarto. Ao que parece, o irmão é cheio de caprichos. Sempre foi assim, lamenta-se ela – e quase chora nessa hora.
Leva-me então para ver as obras no jardim. É um bonito domingo de sol, mas Dona Lúcia continua preocupada com os reparos que precisa fazer. E não tenho o que dizer senão concordar que ficará tudo muito bonito. Quando tornamos a entrar, ela me oferece um copo de suco, um desses sucos de caixinha que equivale a dezenas de cubos de açúcar. Minha primeira reação teria sido recusar, mas achei que seria agradável para ela que eu aceitasse. E me deixo ficar em sua cozinha, tomando suco e lhe ouvindo, pensando em como seria se também eu tivesse coragem de expor os meus dramas pessoais.