Deve ter restado alguém

Deve ter restado alguém para amortecer a queda dos nossos sonhos e azular os dias cinzentos e tristonhos. Alguém que nos ajude a ajuntar as cinzas e renascer; que nos enfie goela abaixo a coragem perdida no emaranhado das covardias de tantos terceiros de quinta categoria. Alguém que chegue para tornar melhor o que encontrou.

Deve ter restado alguém para nos levar a encarar o espelho, a encalhar o medo e despertar a beleza que deixamos dormir em nós; que nos convide a degustar o bom tempero dos momentos simples, e que, de forma lúdica e desinteressada, queira compartilhar esses minutos preciosos ao nosso lado.

Deve ter restado alguém que ame com gesto e afaste da nossa mesa o indigesto sabor da traição; que prove que ainda há carne - e não pedra - no coração humano; que nos faça respirar aliviados ao perceber que nem tudo se perdeu.

Deve ter restado alguém para valorizar nossas virtudes, e em meio às inquietudes, seja calmaria e paz. Alguém que nos ajude a não desistir jamais, a ter de volta a fé que perdemos nas promessas velhas, cínicas e repetidas. Ou melhor: deve ter sobrado alguém que não precise prometer. Alguém que saiba ser sério e palhaço sem brincar com sentimentos.

Deve ter restado alguém para nos dar bem mais do que um beijo e um amasso; para aliviar nosso cansaço; que seja porto, que seja chão, que, enfim, enterre o morto que deixamos apodrecer em nosso porão. Deve ter restado alguém que estenda o braço e num abraço caminhe conosco na mesma direção.

Alessandra Cavalcanti
Enviado por Alessandra Cavalcanti em 07/07/2014
Código do texto: T4872791
Classificação de conteúdo: seguro