Caxangá não sabe
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      Conhecia, ainda quando criança, a existência da Avenida Caxangá: nome curioso para um logradouro público e de procedência desconhecida para ele. Não lhe despertou interesse, curiosidade, ou a necessidade em conhecer-lhe o significado.
     Alguns anos depois, um novo encontro aconteceu com a palavra Caxangá. Agora em uma atividade de treinamento para supervisores de equipes, quando foi proposta para a dinâmica de grupo, a cantiga de roda chamada Escravos de Jó.  A letra da canção diz: escravos de Jó jogavam Caxangá...
     Afinal, qual o significado dessa palavra? Há agora certo grau de curiosidade, mas no grupo sequer, havia um que conhecesse a origem ou semântica desse enigmático vocábulo.
     Nem mesmo, o abandono da dinâmica por um dos participantes, que justificou a sua saída pelo não conhecimento da palavra Caxangá, foi suficiente para motivar, ali, naquele momento, a descoberta.
      Agora, um pouco mais de cinquenta anos, após o primeiro encontro, vem o destino como credor, efetuar a cobrança da dívida não paga e não há como adiar.
     A cobrança veio através de um pedido de pessoa de grande estima e que aos noventa e três anos de idade e oitenta de afastamento do lugarejo natal, gostaria de visitá-lo para acalmar a curiosidade de saber como estaria agora, aquele pequeno torrão onde vivera treze anos de sua vida, deixando-o ainda criança.
      O acesso ao local é iniciado pela BR 101-sul e na altura de Ribeirão – PE, continuado pela PE-85. Os pontos de referência eram: mais ou menos nove quilômetros e uma torre de usina de cana de açúcar que poderia estar ao lado direito ou esquerdo e não havia certeza de sua existência, pois o tempo poderia tê-la posto abaixo.
     O local foi encontrado sem grande esforço, mas imperativo constatar a superação da quilometragem esperada e, a realização de quatro paradas para solicitar a orientação de populares.
      Havia com ele, a expectativa na remota possiblidade de encontrar algum conterrâneo de idade próxima à sua, e que o reconhecesse, e juntos pudessem relembrar fatos compartilhados e realizar, a leitura de oitenta anos de histórias ali ocorridas, durante o seu afastamento. 
      O primeiro acesso encontrado, o levou ao coração daquele pequeno lugarejo e frente a frente, as sobras do que fora antes, uma usina de cana de açúcar, a usina Caxangá. 
     Ainda de dentro do carro, parecia não lhe vir disposição e forças para enfrentar de pé, a queda do império da monocultura da cana de açúcar e por consequência de sua terra natal.
      Olhava para os lados com olhos de vai chover. A mente aturdida era um amontoado de nuvens escuras e carregadas de dúvidas que se chocavam, e produziam raios de esperança em insistente procura do caminho de volta à terra.
      Rápido, baixou o vidro do carro e perguntou a um grupo de rapazes que passavam animados com destino à Recife. Dois times grandes do futebol pernambucano realizariam à tarde, a partida mais importante da última rodada, para a definição dos quatro classificados à disputa do título de campeão e eles estavam a caminho do estádio.
 - Onde fica o cine Rex?
       A pergunta partiu com a determinação de um raio carregado de energia que se desvencilha das nuvens e lança-se ao espaço na velocidade da luz produzindo brilho, calor e deslocamento de ar: o trovão. Os rapazes se entreolharam. No olhar daqueles jovens torcedores, a expressão mútua era de dúvida. Imediatamente franziram as testas, e em coro, questionaram de volta.
- Cine Rex?
- Sim, o cinema!
       A possível resposta foi apenas um pensamento, mas exageradamente explícito e talvez audível. Como eles podiam não conhecer a única atração cultural daquele lugar? Ainda mais, que o valor dos ingressos era descontado em folha de pagamento da usina, o que tornava a frequência praticamente obrigatória.
      Lá, havia trabalhado como bilheteiro. Lembrou que o dinheiro ganho gastava na compra de doces, bombons e chocolates que guardava com muito cuidado para quando adulto, montar o seu próprio negócio.
     Um dos rapazes, sábio em perceber o desapontamento instalado no olhar daquele senhor de idade, informou, sem demonstrar segurança, que onde fora o cinema, agora era o clube.
      Por muito insistir, ele agora, abatido e tentando disfarçar, a evidente decepção que lhe absorvia e lhe tirava o ânimo em continuar, aceitou fazer o contorno das instalações apontadas pelos rapazes como o clube social do local. Nem mesmo um clube parecia ser!
      Ao concluir o contorno, no topo de um plano elevado, foi avistada uma pequena igreja. A visão lhe fez sorrir e concordar em subir até lá, o que infelizmente não foi possível, pois a rua de acesso, embora fosse pavimentada, não apresenta condições de trânsito para veículos de passeio e ainda se encontrava bloqueada por um caminhão mal estacionado.
      Gostaria de ir até a igreja. Nela, a sua busca pelas marcas do passado vivido ali, terminaria. Encontraria no ar, nas paredes, no altar, nas imagens dos santos, o registro de sua passagem e participação nas celebrações de missas.
      A alegria propiciada pela visão da igreja lhe trouxe a energia suficiente para concordar em seguir por uma estreita ruela de barro batido, adentro às entranhas daquele pequeno lugar.
      A maior parte do casario antigo ainda se encontra lá. O mais rápido olhar para aquelas portas, janelas e paredes de barro é capaz de listar o sofrimento daquele povo.
      Há um mercado público e umas poucas lojas de comércio. Em uma delas entabulou uma breve conversa com um cidadão local. O bastante para constatar a impossibilidade de encontrar alguém com as mínimas condições de lhe reconhecer. Oitenta anos para aquele local fora uma eternidade.
      Caxangá não sabe! É melhor talvez não saber que, assim como tantos outros lugares e pequenas cidades brasileiras, principalmente no nordeste, foram vítimas da colonização portuguesa e da monocultura agrícola. Cana de açúcar, café, cacau e algodão propiciaram o enriquecimento de poucos e a sobrevivência de muitos que, ao final do ciclo, foram transformados em miseráveis.
      Ele estava a salvo! Havia tido a coragem ou sido arrastado por sua mãe que enfrentou o machismo e coronelismo da época e partiram dali cedo em busca de estudo e trabalho sólido na capital.
      Não fora fácil, mas estava de volta, agora como o general que retorna ao campo de batalha como vencedor. Precisava encontrar aquele garoto que ali parecia ter ficado e apresentá-lo aos parentes que o acompanhavam nesse retorno. 
      Na volta para o Recife, após a busca e constatação que ele não mais residia em Caxangá, traz consigo a certeza que, definitivamente e para sempre, o encontrou dentro de si: onde habita o seu coração, suas lembranças e lhe carbura a emoção.
      Ao retornar à PE – 85, do alto foi avistado um acesso que permitia chegar de carro até a pequena igreja, vista anteriormente, de lá debaixo.
     A igreja está lá, alicerçada na fé, resistindo ao tempo de frente para a praça da igreja, como escrito na placa, afixada em sua fachada.
      Ao lado, o antigo casarão da usina, transformado em escola pública.
Sorriu aliviado por ter encontrado e estar diante de uma prova erguida de sua história vivida e contada por ele para tantos.
      Fotografou junto à esposa, filha e genro presentes. Considerou o final feliz do reencontro com o seu passado e o significado semântico da palavra Caxangá: substantivo masculino de possível origem Tupi, cujo sinônimo é Siripuã, uma espécie de crustáceo.
      Na volta à Recife, um delicioso camarão brindou a alegria daquele momento.
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Crônica escrita em homenagem ao aniversário de noventa e três anos do cidadão de Caxangá, Ribeirão – PE, Albani Araújo.
Recife, 08 de fevereiro de 2014.
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