LEMBRANÇA XIV

Lembro-me perfeitamente do dia em que minha avó Valentina desconfiou de que havia um “ladrão” de leite dentro de casa.

Naquela época o leite era comprado diretamente ao leiteiro que vinha de porta em porta, numa carroça semelhante às bigas romanas, puxada por um cavalo.

A carroça tinha o formato da letra éle deitada, com o local para o condutor sentar na parte alta e a carroceria onde eram colocados os latões contendo o leite, amarrados com corda e contidos por uma tábua no fundo da carroça, por onde passavam as torneiras para que o produto pudesse passar diretamente do latão para o vasilhame do comprador.

Muitas vezes o leite era fervido após o almoço porque o fogão à lenha, só dispunha de três bocas para preparar o almoço para a família numerosa e, para não azedar, ficava sobre a mesa, coberto com um pano ou peneira, por causa das moscas.

Ainda não haviam inventado o leite industrializado, pasteurizado, desnatado, homogeneizado, enriquecido com ácido fólico, vitaminas A e B, ferro, formol, óleos vegetais, ômega 3, 6 e 9, água sanitária e mais tantas “maravilhas” da tecnologia moderna, responsáveis por alergias, osteoporose e um sem número de doenças cada vez mais presentes nos grandes centros.

Um dos animais não humanos da casa de minha avó era Veludo, um gato Angorá do pelo negro, longo, sedoso e olhos verdes esmeralda.

Como todo gato bem alimentado, Veludo passava os dias ou dormitando nas cadeiras da varanda, ou se esfregando nas pernas de quem estivesse na cozinha quando ele ouvia o som da faca sendo afiada para tratar a carne ou o peixe do almoço.

Depois de ganhar um reforço cru nessas ocasiões, Veludo voltava para a varanda e passava horas praticando a higienização da pelagem bem cuidada.

Nesse tempo as indústrias ainda não haviam lançado no mercado as maravilhosas rações para cães e gatos, ricas em fibras e vitaminas de todos os complexos, ácidos graxos e bastante cloreto de sódio, responsáveis pelas idas constantes desses animais aos consultórios veterinários.

Quem quisesse criar um “bicho” teria que alimenta-lo com alimentos crus ou ir para a beira do fogão preparar as gororobas com farelo de milho ou arroz de terceira e os retraços do peixe ou das peles da carne e as gorduras, os sebos, os ossos e as cascas e talos das verduras e legumes que eram disponibilizadas ao entardecer.

Na casa da minha avó, o leite, depois de fervido, era colocado num jarro de boca estreita e permanecia esfriando até chegar numa temperatura em que se pudesse colocar a tampa e levar ao refrigerador Frigidaire, último tipo, sensação do momento.

A minha tia, “dona do gato” para defendê-lo da acusação, disse que a cabeça dele era muito grande e que não passava pela boca do jarro.

Nesse mesmo dia, depois do almoço, quando todos estavam envolvidos com atividades longe da cozinha, Veludo subiu na mesa, puxou o pano e parou para olhar para a minha tia e minha avó que tinham entrado na cozinha.

Minha tia falou: - Beba Veludo...

E o espertinho enfiou a cabeça pela boca estreita do jarro, bebeu o quanto quis e depois ganhou o restante do leite porque, até então todos tinham consumido leite com saliva de gato, mas agora, sabendo do fato, ninguém mais queria beber o resto do leite que Veludo não teve amplitude de estômago para consumir.