BAILE DA SAUDADE

Há alguns dias eu precisei fazer um exame (análise clínica) e como o laboratório que costumo usar ( fica a apenas uma estação de metrô de minha casa) só tinha horário para um mês, após eu dizer que era muito tempo e urgente, a atendente me disse que no Tatuapé (zona leste de São Paulo) havia horário para a semana seguinte. Marquei o exame para 14:30 horas. Fui atendido no horário, mas como tinha que fazer uma preparação, eu só ia ser atendido às 17:30 horas e talvez com algum atraso. Então eu tinha três horas para fazer nada. Pensei em ir até o Itaquerão (Arena Corinthians) que não distava muito de onde eu estava, mas por ter que caminhar quase um quilômetro depois de descer do metrô e como estava quente, desisti. Resolvi vagar pelas ruas do bairro. Antes procurei um orelhão (fica bem mais em conta que uma ligação de celular a cobrar) para avisar que não estranhassem a minha demora porque eu ia chegar tarde para o jantar.

Quando estava voltando eu ouvi ao longe os acordes de um bolero, estava tão longe que não identifiquei a música (conheço quase todos). Pensei: “Bolero a esta hora, no meio da tarde, em uma segunda feira, não estarei delirando?” Não, não estava, pois à medida que eu caminhava de volta o som ficava mais nítido até que parei para ouvir melhor e não era ilusão coisa alguma, à minha frente vi um cartaz que em síntese dizia: Baile da terceira idade, todas as segundas feiras, das 14:00 às 18:00 horas, mesa e estacionamento gratuitos. Havia muitos carros no estacionamento, uma entrada lateral e lá nos fundos uma escada, um porteiro e um salão. Segui o corredor lateral, subi uns três degraus e conversei com o “porteiro” que depois da conversa deduzi que ele era o coordenador. Agora o som de bolero era alto, parecia vir de uma orquestra.

- Boa tarde! Passando por aqui e ouvindo som de bolero e lendo anuncio que é um baile, resolvi entrar para conhecer. Sou forasteiro, moro no bairro da Saúde (zona sul de São Paulo) e me encontro aqui por acaso, tenho que fazer muita hora.

- Seja bem vindo, temos baile todas as segundas feiras à tarde. Se o senhor quiser conhecer, fique à vontade.

Recebi uma ficha que dava direito a uma mesa e entrei, sentei-me logo na primeira mesa, bem perto da entrada. Naquele momento eu entrei no túnel do tempo e voltei cinquenta anos aos ouvir os sucessos da época. Os casais dançando de rosto colado, todos a caráter, isto é, alguns cavalheiros de terno e gravata, as damas muito bem vestidas expondo joias e como sempre nas mesas encontravam-se damas desacompanhadas. Em minha memória vieram os bailes de formatura, os bailes de garagem aos sábados à noite e domingos à tarde. Para mim eram todos jovens que ali se encontravam. Terminada a série de boleros, eis que entra o “rock in roll”, meus pés sentiram aquela “coceira” e meus olhos marejaram. De pronto pensei em tirar uma dama, “amarrar um papo”, mas eu estava de tênis e roupa de agasalho própria para o exame que eu ia fazer. E as damas e cavalheiros iam chegando e se aglutinando nas mesas, garçons servindo bebidas, logo me lembrei das “cubalibres”, “samba”, Hifi e outros coquetéis da época. A “orquestra” era regida por um tecladista. Devido ao meu traje, senti-me um peixe fora d’água, pois não dançava e também não tinha “amarrado um papo” com nenhuma dama. Só não era eu um “lagartixa” (cavalheiro “duro” de bolso que fica encostado na parede vendo os outros dançarem) porque estava sentado. Algumas damas me cumprimentaram (por educação), outras me olhavam e eu pensava que elas podiam estar pensando “quem era aquele forasteiro”. Então fui conversar com o coordenador que acredito fosse o diretor do clube.

- Amigo, obrigado por sua gentileza! Em meia hora revivi os meus vinte anos quando eu frequentava os bailes. Bons tempos que não voltam mais, alguns dizem, mas eis que estou vendo que a juventude não morre, a gente deve continuar, o que vi hoje aqui é um grande exemplo de qualidade de vida.

- Nosso clube foi fundado em 1931 e temos baile todas as semanas. São sempre os mesmo frequentadores. O senhor deve ter notado que a diferença de idade é muito pouca. Somos os jovens dos anos 1960/70 que aqui se reúnem. Volte quando quiser, será muito bem vindo.

- Voltarei sim, mas virei a caráter, hoje me sentiria envergonhado em tirar uma dama para dançar, notei que há um contemporâneo nosso que calçava sapato bico fino de duas cores. Bem a caráter mesmo e todos os frequentadores estão com boa ginga e explodem de alegria. Parabéns! Voltarei.

Hoje é segunda feira e, acreditem se quiserem, enquanto estava escrevendo esta crônica, ouvia boleros com o trio “Los Panchos.

Sempre quando sinto saudade plagio Ataulpho Alves “Eu era feliz e não sabia”.

SANTO BRONZATO em 30/06/2014

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 30/06/2014
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