Minha natureza
A natureza a gente respeita, diz minha mãe em meio aos relâmpagos lá fora, pede para apagarmos todos os aparelhos. Fico pensando: - E a minha natureza? Quem a respeita?
Amanhece.
Olho para prédios e casas ao longe, gosto de observar carros e ruas e pessoas como se fossem formigas, em meio a um silêncio indescritivelmente delicioso. E moro num lugar em que há, de um lado, esses insetos, e do outro, também ao longe, morros, pés de eucalipto, árvores, uma área verde também deliciosamente silenciosa. E é impressionante como num piscar de olhos eu me teletransporto desse silêncio longínquo para a proximidade do latido dos cachorros aqui da rua. Alguns são engraçados: uivam pela ausência de seus donos, quando na verdade deveriam festejar ou suspirar de descanso. Há pássaros aqui também, e da minha janela consigo ver as armações de concreto onde estão erguendo o futuro galpão de roupas de uma grande loja. Meu tio insistiu para todos da minha família colocarmos nossos currículos lá, segundo ele teremos emprego na certa. Respondi que sou revisor e que, apesar de não ganhar bem, consigo pagar minhas contas. Na verdade não quero outra coisa que não seja escrever ou revisar. E para ambos os casos preciso lutar muito: para escrever preciso da porra da inspiração, do encantamento de espírito que me falta, o fastio de escrever se apoderou de mim. Para revisar a luta também é diária, preciso ir conquistando novos clientes a todo custo e a todo tempo, mas dessa luta eu gosto, eu gosto de ser freelancer, autônomo, “artesão” (meu pai era mecanógrafo, consertava máquinas de escrever, eu me considero mecanógrafo textual), o que eu detesto é ter que me reinventar para ganhar do vazio. Essa é a minha natureza. Prefiro lutar com livros de gramática, consultar dicionários, tirar dúvidas por e-mail – um passarinho muito lindo acaba de passar pela minha janela – aprender, errar, consertar, negociar, ganhar, procurar, encontrar, há vinte anos descobri que queria ser escritor, mas há quatorze anos me descobri como revisor e não me vejo fazendo outra coisa. Adoro procurar problemas nos textos dos outros. Procurar problemas não: procurar soluções para os textos dos outros. As pessoas querem que apontemos soluções para seus problemas, não que apontemos os problemas que elas já sabem existir. Sou pago para eliminar orações desnecessárias, não para conversar desnecessariamente. Esse é meu trabalho. Em silêncio. Eu e os textos. – Preciso fazer a barba e comer alguma coisa. Essa é a minha natureza.