QUANTO TEMPO DE QUADRILHA? A VIDA INTEIRA

Algumas pessoas me perguntam: Quanto tempo de quadrilha? Gosto de responder: a vida inteira!

Do fundo do baú vem a imagem do Centro Social Urbano Inácio Vale, lá nas barrocas, nos anos oitenta ,quando tudo começou. Participávamos de catequese e grupo de jovens. O arraiá de lá era conhecido por toda redondeza e quem ficava no comando das quadrilhas era a Silvia Vale. Como era bom! Eu, menor de todos, mas já atrevido, gostava de participar, de fazer a coisa acontecer, de ficar atento e reproduzir, em casa, com meus amigos imaginários. Sempre gostei de comandar, de ficar a frente, mas no grupo real não era assim, tinha que obedecer, as regras eram claras, as normas tinham de serem cumpridas e assim era.

De lá para a escola, no período ginasial. A gente queria dançar, mas não tinha marcador. Nessa época já atuávamos nos eventos escolares, já fazíamos os primeiros textos e as primeiras coreografias para as datas comemorativas. Desafio bom de organizar, de ser o marcador da quadrilha. Aprovado, aprovado e assim os anos se repetiram: marcamos quadrilha, participamos de grupos de teatro, fizemos aulas de danças, fomos incentivados a escrever e atuar nos eventos escolares. Da escola para a sociedade, para a igreja e liderança em grupos de jovens. Desenvolvemos a leitura pela cultura popular, antes tida como folclore, desenvolvidas em períodos determinados. Com a maturidade e os estudos dirigidos e direcionados, a oportunidade de criar um grupo nosso, de experiência nossa, de liderança nossa, de responsabilidade nossa. Aos poucos vai nascendo a SENSAÇÃO. O gosto, a prática, a descoberta e a inovação: criávamos passos novos, recriávamos novas maneiras de desenvolver os passos tradicionais, éramos aos mesmo tempo marcador e brincante do cordão, dávamos ritmo e descobríamos novas maneiras de chamar a atenção de todos. Era um trabalho prazeroso, dinâmico, inovador. Cada ano o grupo crescia e aumentava a responsabilidade misturada com prazer e devoção a um trabalho de alma, de gozo, de plenitude.

As bandeirinhas, os balões, as fogueiras, os fogos, os chapéus de palha, as roupas com remendos, os coloridos fortes das chitas e dos xadrezes, os sons do regional - sanfona, triângulo, zabumba - as palhas de coco, as comidas de milho... Tudo isso ganhava um espaço enorme dentro da gente. Passamos a ser mais felizes, mais realizados, mais sensíveis aos tempos de outrora e as mudanças do tempo. Não era folclore, era cultura viva! Não era apenas o costume e a tradição de um povo, mas a alma de uma gente que se travestia a cada mudança, mas no ritmo da dança guardava os fios condutores que interligavam os tempos.

Quanto tempo de marcador? Aprendi que na vida há tempo que não se conta, mas experiência que se soma. Eu somo os instantes de gratidão, o tempo de aprendizagem e a possibilidade de transmissão... Tudo que aprendi quando fui a Pernambuco e lá descobri o coco, o xaxado, o maracatu, a ciranda, a diferença entre baião e xote e demais ritmos, a quadrilha estilizada e todo o entendimento da dinâmica da vida, da mudança, da transformação dos costumes a partir da evolução da sociedade. A maioria da vida não é mais rural, é urbana. O tempo da lamparina foi vencido pela eletricidade, os trios se multiplicaram, os objetivos e as motivações também... A quadrilha tradicional passou por inovações, nasceram os vários estilos e a quadrilha estilizada, a vontade de trazer para o urbano elementos de outras áreas geográficas: sertão, litoral, zona da mata... O multiculturalismo do povo Brasil. Agora não apenas os noivos, a rainha do milho, a viúva, o padre e os matutos, mas os ciganos, os cangaceiros, as sinhás, os coronéis, os videntes, os personagens vislumbrados no imaginário popular, o artesanato, o luxo, a pesquisa...Necessitei das lições dos mestres: Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Deífilo Gurgel, poetas e cantadores populares para entender essa dinâmica, essas transformações. Fui aos estudos da sociologia do Gilberto Freire, do Darci Ribeiro e da antropologia do Émile Dukhaime. O hoje também é o ontem reinventado!

Não estou mais na arena, nem na quadra ou terreno baldio ensaiando. Não fico mais nas calçadas até altas horas planejando o dia seguinte, nem tão pouco vendo rifa ou bingo ou cozinho feijão a noite inteira para as feijoadas festivas. Não tenho mais a preocupação de outrora de ir a prefeitura, de tentar falar com as autoridades para solicitar o piche, cavar os buracos, arranjar as estacas, armar o arraial, pedir permissão aos vizinhos, nem solicitar da COSERN a ligação da luz. Estou na arquibancada, nas ruas, nas conversas com os amigos, no apoio moral, na troca de experiência, no júri de concursos quando solicitado, em oficinas, em debates, no resgate das histórias dos grupos através de pesquisa, nas redes sociais em busca de soma, de informações, na torcida por todos e a continuidade dos processos para a construção de uma identidade cultural como patrimônio de uma gente tão esquecida, ainda, como nós amantes dos festejos juninos.

Quanto tempo de quadrilha? Até que as pernas não se aguentem em pé ou os dedos não obedeçam mais os comandos de escrever...

Sou quadrilheiro de coração, sou junino, por isso tenho a devoção de usar chapéu de palha o mês inteiro, de tirar do fundo do baú a roupa dolorida ou a cada ano comprar as sianinhas, as fitas de cetim, os tecidos estampados e confeccionar minhas roupas juninas. Vergonha? debaixo dos pés, é o melhor lugar que encontro para que eu possa pisar sobre ela... Agora a emoção me toma, depois eu volto com minhas memórias...