Mágoas do morto

Os dois cresceram juntos. Brincaram na mesma rua, estudaram na mesma escola e por muitos anos foram o que se pode chamar de melhores amigos. Nem mesmo a vida adulta havia sido capaz de separá-los: eram padrinhos de casamento um do outro e de batismo do primeiro filho. Quando brigaram, já eram homens maduros. Ninguém nunca soube direito a razão do desentendimento. Falava-se à boca pequena que envolvia dinheiro, mas muitos garantiam que o caso era com a mulher de um deles. O fato é que desde então nunca mais se encontraram e não podiam nem ao menos suportar a menção ao nome do outro. Os que conheciam a história daquela amizade lamentavam que ela tivesse terminado assim. Nem o correr dos anos foi suficiente para que refletissem e buscassem uma reconciliação.

Aconteceu que um deles morreu. Os familiares ficaram na dúvida se avisavam ou não o antigo amigo. Por fim, venceu a opinião de que deveriam avisar e ele que decidisse se iria participar do velório. Quando ligaram para ele e contaram o que havia acontecido, informando também o local do velório e o horário do enterro, o telefone ficou mudo do outro lado. Só depois de alguns segundos é que conseguiram ouvir um seco obrigado. E nada mais.

Todo mundo achou que ele não iria aparecer, mas quase no fim do velório o homem surgiu à porta. Deu uma olhada ao redor, viu onde estava o caixão, mas não ousou se aproximar. Ficou em um canto da capela mortuária e não puxou conversa com ninguém. Os outros é que foram até ele e tentaram convencê-lo a se aproximar do morto. Pois não foram eles grandes amigos durante a maior parte da vida? Que esquecesse as desavenças e fosse lá se despedir do antigo companheiro. Mas ele ainda hesitou, e só depois de ser praticamente empurrado é que se deixou ficar ao lado do caixão. Uma vez lá, ficou olhando o morto por um bom tempo, esquecido do que acontecia ao redor. Ninguém sabe o que ele pensava na ocasião, mas sem dúvida eram coisas que não poderiam mais ser ditas.

milkau
Enviado por milkau em 25/06/2014
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