Casando
ao pé da fogueira
1. Acho que já andei contando que casei duas vezes. Meu primeiro casamento - que é o que no momento interessa - deu-se na minha cidade natal, no sertão do Ceará. Eu tinha de 14 para 15 e a noivinha de 12 para 13 anos de idade. Éramos, os dois, muito ingênuos, e felicíssimos.
2. Mesmo "tão novins", como diziam as testemunhas, tivemos o pronto consentimento e as bênçãos dos nossos pais. Eles se uniram, dividiram as despesas, e fizeram uma festa daquelas pros noivinhos. A festa durou, excepcionalmente, até quando se apagou a última estrela no céu!
3. Rolou pouca bebida alcoólica. Só "os grandes", os maiores, portanto, puderam tomar uma cachacinha com limão ou tendo o caju como tira-gosto.Meu pai, por exemplo, até onde me foi dado ver, tomou três ou mais doses naqueles copinhos de botecos, aquele de fundo bem grosso.
4. Para a raia miúda, só aluá. O aluá, para os que não sabem, é uma bebida, de origem indígena, feita com a casca do abacaxi. Depois de alguns dias fermentando, o aluá é coado e servido. Uma delícia. Faz-se aluá de outras coisas; mas o bom mesmo é o de abacaxi.
5. Como o casamento era na roça, os noivos chegaram vestindo roupas caipiras, mais de uma beleza incomparável. Tudo simples é mais bonito.
6. Lembro-me ainda, volvidos tantos anos, da açucena que enfeitava o cabelo longo e macio da Heleninha. Ela chegou no terreiro da casa, todo decorado com viçosos pau-dárcos, correndo e debaixo de ruidosos aplausos.
E eu, de bigode e chapéu de palha, segurava-lhe as mãos, distribuindo, segundo me disseram, um sorriso tímido e "muito sem graça".
7. Como era noite de São João, havia balões no céu. Eles ainda podiam engalanar as noites joaninas. Não era proibido soltar balões.
E na presença de parentes e amigos, que nada arguiram que pudesse impedir o enlace, casei com Heleninha. A cerimônia foi presidida pelo meu primo que, de repente, surpreendeu a todos, aparecendo de batina e com aquele barrete de três pontas.
8. Muitos anos depois, voltando por acaso ao sertão, soube que o meu parente fora ordenado padre e exercia seu pastoreio como vigário de uma pequena cidade, no interior do Pará. E mais: que na sua paróquia liderava um elogiável trabalho na Pastoral da Família. Fiquei alegre.
9. E Heleninha? Ela morrera de parto ao parir o seu primeiro filho, fazia muitos anos. Mostraram-me a sua sepultura, naquela altura bastante maltratada pela ação impiedosa do tempo.
Mas no seu modesto mausoléu, se é que assim posso chamá-lo, descobri o seu retrato. Dizia um pouco do que fora ela naquele são-joão de mil novecentos e não sei quanto...
10. Que fiz, então. Procurei uma açucena e a coloquei ao lado do seu retrato. Fiz uma silenciosa prece e sai, estrada afora, recordando-a no seu vestido de chita matuto e a açucena que lhe enfeitava o rostinho na noite do nosso casamento de mentirinha, ao pé da fogueira...
ao pé da fogueira
1. Acho que já andei contando que casei duas vezes. Meu primeiro casamento - que é o que no momento interessa - deu-se na minha cidade natal, no sertão do Ceará. Eu tinha de 14 para 15 e a noivinha de 12 para 13 anos de idade. Éramos, os dois, muito ingênuos, e felicíssimos.
2. Mesmo "tão novins", como diziam as testemunhas, tivemos o pronto consentimento e as bênçãos dos nossos pais. Eles se uniram, dividiram as despesas, e fizeram uma festa daquelas pros noivinhos. A festa durou, excepcionalmente, até quando se apagou a última estrela no céu!
3. Rolou pouca bebida alcoólica. Só "os grandes", os maiores, portanto, puderam tomar uma cachacinha com limão ou tendo o caju como tira-gosto.Meu pai, por exemplo, até onde me foi dado ver, tomou três ou mais doses naqueles copinhos de botecos, aquele de fundo bem grosso.
4. Para a raia miúda, só aluá. O aluá, para os que não sabem, é uma bebida, de origem indígena, feita com a casca do abacaxi. Depois de alguns dias fermentando, o aluá é coado e servido. Uma delícia. Faz-se aluá de outras coisas; mas o bom mesmo é o de abacaxi.
5. Como o casamento era na roça, os noivos chegaram vestindo roupas caipiras, mais de uma beleza incomparável. Tudo simples é mais bonito.
6. Lembro-me ainda, volvidos tantos anos, da açucena que enfeitava o cabelo longo e macio da Heleninha. Ela chegou no terreiro da casa, todo decorado com viçosos pau-dárcos, correndo e debaixo de ruidosos aplausos.
E eu, de bigode e chapéu de palha, segurava-lhe as mãos, distribuindo, segundo me disseram, um sorriso tímido e "muito sem graça".
7. Como era noite de São João, havia balões no céu. Eles ainda podiam engalanar as noites joaninas. Não era proibido soltar balões.
E na presença de parentes e amigos, que nada arguiram que pudesse impedir o enlace, casei com Heleninha. A cerimônia foi presidida pelo meu primo que, de repente, surpreendeu a todos, aparecendo de batina e com aquele barrete de três pontas.
8. Muitos anos depois, voltando por acaso ao sertão, soube que o meu parente fora ordenado padre e exercia seu pastoreio como vigário de uma pequena cidade, no interior do Pará. E mais: que na sua paróquia liderava um elogiável trabalho na Pastoral da Família. Fiquei alegre.
9. E Heleninha? Ela morrera de parto ao parir o seu primeiro filho, fazia muitos anos. Mostraram-me a sua sepultura, naquela altura bastante maltratada pela ação impiedosa do tempo.
Mas no seu modesto mausoléu, se é que assim posso chamá-lo, descobri o seu retrato. Dizia um pouco do que fora ela naquele são-joão de mil novecentos e não sei quanto...
10. Que fiz, então. Procurei uma açucena e a coloquei ao lado do seu retrato. Fiz uma silenciosa prece e sai, estrada afora, recordando-a no seu vestido de chita matuto e a açucena que lhe enfeitava o rostinho na noite do nosso casamento de mentirinha, ao pé da fogueira...