APRENDI O CÓDIGO MORSE...E OUTRAS COISAS.
Na década de 50 meu finado pai era chefe-responsável por uma agência dos Correios,na minha terra natal e,toda a família residia no andar superior do prédio,onde por 15 anos lá moramos...Éramos,pois,”inquilinos” da União federal.O prédio tinha forte estrutura e a arquitetura “art deco”.Hoje,não mais o prédio existe. Foi derrubado,por liminar judicial,num fim de semana,pela empresa de economia mista do atual Correio.Contra  a vontade da população que queria manter o belo prédio.Nada adiantou.A derruição foi um SEDEX-10, maldoso da empresa,contra minha  cidade natal.Também contra minha vida!
Os Correios na época,estavam subordinados ao Ministério da Viação e Obras Públicas,há tempos extinto,isso por volta de 1964.Hoje,embora os Correios sejam uma empresa só majoritariamente administrada pelo governo federal.Virou mesmo economia mista.Bem da verdade melhorou,em tudo,ou quase tudo.Hoje,há até franquias de particulares nos Correios.É a modernidade.
Assim foi...convivi desde criança com funcionários dos Correios,que eram paupérrimos,mal remunerados e nem mesmo reconhecidos pelo governo federal,que tinha outras prioridades.O mesmo quanto à sociedade dominante...na cidade.Tudo é possível.
Vivendo com esses pobres diabos,funcionários “barnabés”,aprendi desde cedo que não deveria mesmo ter algum preconceito,com ninguém...Meu melhor amigo era um negro telegrafista,cujo nome (verdadeiro) era Mello,e,provavelmente,não esteja mais entre os vivos.Mas valeu!!Tenho saudades.
Na minha terra natal,quando ainda era menor de idade,já ficava indignado,pelo fato absurdamente incrível,pré-conceituado de Prefeitos,autoridades locais,  sociedade argentária,escravocrata  que não deixavam o negro atravessar,apenas cruzar a pé, o chamado até hoje,”Jardim de Baixo”-uma quadra enorme-três quarteirões- com coreto,gramado,coqueiros,plantas ornamentais e belíssimas árvores.Coisa linda,até hoje.
Alguém perguntará,mas como assim?Absurdo!!Na década de 50!? Século XX!?
Explico:existia dia e noite  guarda municipal,algum fiscal das quantas,com apito na boca,para tocar quando um negro ousasse atravessar o “Jardim de Baixo”.Qualquer tentativa do afro-descendente era reprimida e advertida,pelo  “leão de chácara”,um autêntico pau mandado da administração da época.Negro não podia atravessar o jardim.Recordo- a todos- que isso foi na década de 50,do século XX.Em outras palavras,foi ontem.A Lei Áurea é de 1888.
Mas,qual o crime? Qual a norma? Qual o motivo?
Nenhum!!Nenhum!!
PRECONCEITO!PRECONCEITO!PRECONCEITO!
Telegrafista,na época,era a elite do funcionalismo dos Correios,os demais eram mesmo ignorantes,pobres e corretos, Dignos,alienados!Coitados.
Mello,o telegrafista-negro,tão negro que reluzia sob a luz do sol era meu amigo, ensinou-me pacientemente o Código Morse,nas horas vagas,e eu- transgressivamente- chegava até passar alguns telegramas com aquela maquininha de tocar os dedos mensagens em Código Morse da cidade natal para São Paulo,(meu pai nada sabia)tudo com data e hora marcadas.Por óbvio,não havia na época nenhuma sequer dessas atuais modernidades:computador,internet,email,tablets sedex,etcetal .Era tudo, no “fogão à lenha”,como se diz.Tudo muito rude,como chão de casa de pedinte e esmoler. 
Já estudando no ginásio,na adolescência,puberdade,meu amigo Mello,com PHD em ZONA resolveu me dar uma grande oportunidade e aquela emoção jamais sentida: conhecer as  mulheres mundanas e profanas,concorridíssimas,naquela época por homens casados e solteiros.Eram as Genis de Chico Buarque,o grande poeta e compositor,que veio mais tarde ao mundo para cantar e encantar.A famosa ZONA.As mulheres eram fichadas,(?)fotografadas(?) na Polícia(sic)e,mesmo assim,tinham excelente IBOPE,entre os homens.Eram confinadas em quarteirões e quarteirões,casas e casas,sob rigorosa fiscalização policial(?).Lá os maridos infelizes choravam até no colo dessas Genis...Para fazendeiros ricos e seus filhos,a ZONA era o escape das frustrações várias...na família,onde a monotonia imperava em tudo,em tudo.Por outro, verbo “ficar”-de hoje- era FICAR mesmo naquela época e não manter-se em rápida união sexual,nem sempre duradoura.  Corromperam,atualmente, até esse verbo!Enfim,hoje tudo mudou.Atualmente,no entanto, a ZONA é total,irrestrita.Não é periférica nem suburbana.É global.E,ponto final.
Lá fui eu,esperançoso com o amigo e numa das casas entramos,sem obstáculos e com direito até a uma tradicional cerveja...além da sonhada  primeira grande oportunidade do desvendamento.Nem chequei a sentar num dos sofás espalhados.Estava de pé,entrando na ampla sala ornamentada das doidivanas alegres...Tenho hoje,respeito e simpatia a todas elas,embora não as procure como na juventude.
Infelizmente,logo após fechar a porta da sala das mundanas,sem nenhuma oposição geral,chega,de inopino, um soldado da então antiga Força Pública,"FP"que rondava,obrigatoriamente,os quarteirões do chamado pecado mortal,da imoralidade,conforme sempre clamava o padre no púlpito da igreja matriz da cidade aos fervorosos fiéis e às piedosas carolas de véu preto na cabeça,chamadas de “papa-hóstias”...Todos ansiosos pleiteando um confortável lugar ao céu.Não sei se conseguiram esse fervoroso pleito.Ou,se ainda esperam,um feliz "desideratum"."Deo gratias".
De repente,um soldado de farda cáqui,da época, com capacete escrito "FP",entra e pergunta,solene,autoritário: Quem estava com aquele menor na sala? Mandou então-imediato- se retirar...Era a POLÍCIA.Não há como permanecer no local.Silêncio geral.A musica do cantor Orlando Silva,da eterna boemia, foi interrompida,na vitrola,com disco de vinil.
Mello de imediato assumiu o ato e o fato,deixando comigo o local,passando a mão pelo meu ombro,desapontado. Não resistiu...Contra a força e a lei não há resistência...
Fiquei então só naquela vontade.Seria a primeira,da primeira que jamais foi dada.
Lá fora,já na calçada, Mello, amigo do peito,irmão-camarada, perguntou-me: Sabe o que significa “FP”?
Respondi-lhe,inocente,coerente,que seria: FORÇA PÚBLICA.
Aí,respondeu,NÃO,NÃO!! Com um palavrão desabafou:é “F” de “Filho e “P” da PU..”, mesmo!
Assim foi.

Jamais voltei à ZONA!As mulheres eram sempre,alegres, simpáticas, felizes,mas os “FPs” eram muitos...muitos.
Acho que tinha razão...o Mello.
Paciência!