Se fosse um filme
Se fosse um filme
Se fosse um filme estaríamos juntos agora. Se fosse um filme cabeça teríamos longas conversas sobre particularidades, sobre o por que de não estarmos juntos agora, mas antes da cortina baixar estaríamos juntos.
Se fosse um filme o funcionário público eleito pela população iria para as câmeras, (para dar o exemplo), e diria: vou doar mais da metade do meu salário para instituições de caridade, porque é realmente muita grana pelo pouco que eu conto que faço. No filme um jornalista noticiaria com critério e o dono da emissora colocaria em horário nobre.
Dependendo do filme todos os protagonistas seriam assassinados e essa história seria dada como se nunca tivesse acontecido.
Nós fizemos um filme juntos, não fizemos?
Está certo que talvez seja um curta, dado que talvez culmine em positivo e assim nos poupamos de desfechos desagradáveis.
Não deixarei que neste filme ocorra uma rápida sucessão de imagens que mudam a cada dois ou três segundos ou menos.
Se fosse um filme um sujeito alto, dotado de uma autoridade incomum, bradaria para uma rapaziada sem foco: “você não vai fazer nada pela sua pátria se morrer por ela. Você só vai fazer alguma coisa pela sua pátria se você matar o outro FDP por ela”.
Alguém exclama: corta!
O sujeito alto, cuja autoridade ninguém contesta, prossegue: “escolhi esse púlpito para que todos vocês possam ver o grande filho da puta que eu sou”.
O cenário é desmontado, as pessoas debandam e resta um assistente, que diz sem medo para a figura de dois metros de altura: o senhor tem que sair. Não estamos rodando um filme de época.
- E que época é esta em que nos encontramos?
Ninguém sabe a resposta.
Se fosse um filme alguém saberia.
SFUF não precisaríamos nos explicar. Usaríamos siglas e o excesso de cortes rápidos aqui perderiam a vez, pois essa epidemia de curta duração torna a atenção deficiente, torna todos os nossos relacionamentos e percepções superficiais e insatisfatórios.
Ah, S.F.U.F. de ficção científica, um homem entocado num sobrado na Vila Guarani recebe quatro senhoras para o chá da tarde e lhes explica que uma das razões pela qual a Terra ainda não foi invadida por civilizações bélicas de extraterrestres é o grande medo que eles têm das naves dos Arcturianos. Elas são como obras-de-arte tecnológicas, estando muito além de tudo o que tenha sido mencionado.
- Como são os Arcturianos? – indaga uma das senhoras.
O homem, que usa uma boina e que, quando não exala segredos estelares, cantarola, cantarola o dia inteiro, nem os vizinhos agüentam, responde:
- Os Arcturianos são fisicamente pequenos e esbeltos, têm mais ou menos um metro, um metro e trinta centímetros de altura.
Uma outra senhora, de cabelos castanhos, inclina sua curiosidade em saber se são poderosos.
A luz, na sala, vem da janela. O anfitrião coloca açúcar na xícara e depois externa:
- Os arcturianos são uma raça pacífica. Não se envolvem com a guerra há um grande período de tempo e conseguem se manifestar na terceira dimensão. Tem também a habilidade de se protegerem, bem como suas naves, porém não estão envolvidos a nada que possa parecer alguma forma de conflito. Se eles encontram um problema, podem se desmaterializar de imediato, portanto, qualquer objeto projetado em sua direção, simplesmente passará através deles sem causar dano. Muitas civilizações extraterrestres estão aprendendo a fazer o mesmo.
Antes de sair, uma delas externa para as outras: nunca vi um filme de ficção científica assim.
Poderia ser um filme de qualquer coisa.
Sim, acredite, nada muito quadradinho, um filme em duas partes com um letreiro entre as partes: “não deixe que a sinapse de seu cérebro fique no caminho entre você e Deus”.
Se você um filme de arte faríamos sexo como dois condenados.
E se, ao invés, uma comédia romântica, iríamos de carro até as termas do Oiapoque, lembrando de músicas velhas, comendo pipocas, acho até que em algumas cenas apareceria um bicho de estimação.
Se fosse um drama eu te visitaria no hospital. Ao chegar, e somente a título de descontrair, depois das flores e dos beijos, com minha voz de taquara seus ouvidos escutariam:
- Estás ainda mais bonita! Sabe, quando vinha para cá, uns amigos me convidaram para um churrasco, mas eu recusei. Vim direto te ver.
- Se fosse ao contrário – diria você, (visto estarmos num filme) – eu não pararia nem em sinais vermelhos.
Fala isso e sorri, eu mais ainda, pensando que esta foi a coisa mais bonita que já me disseram.
Talvez seja um drama light e ela vai ficar boa.
Há uma TV no quarto. Está passando um filme. Num balcão improvisado um homem de bem discursa. Se fosse um filme, homens assim seriam ouvidos. Enquanto procuro o controle remoto para colocar o som, ela quer saber das notícias mundiais, quer saber das barbáries no Iraque e na África. Encolho os ombros enquanto aciono o controle.
O orador reúne firmeza e elegância ao falar.
Neste novo século - diz ele - vamos encarar e subjugar novas formas de agressão, ódio, ignorância e maldade e nossa vigilância face a opressão e ao terror global será inigualável a qualquer outro momento da história humana. Aos inimigos da liberdade, aos inimigos da democracia e da própria humanidade, dizemos esta noite com uma só voz: não há canto tão remoto nesta Terra, nem caverna tão escura, que os proteja de serem descobertos, revelados e eliminados.
Nossas mãos se entrelaçam.
Na tela surgem as palavras The End.
Se fosse um filme um rosto amigável apareceria de surpresa no quarto, indagando:
- Oh, você vai voltar?
E eu perguntaria:
- O que é voltar? Não existe volta, cidadão, ir é a única direção.
Se fosse um filme, seria um rio. "Rios são caminhos que andam".
(Imagem: Leonardo da Vinci, Bosque de Árvores, 1508. Giz vermelho em papel Royal Collection, Reino Unido.)
Se fosse um filme
Se fosse um filme estaríamos juntos agora. Se fosse um filme cabeça teríamos longas conversas sobre particularidades, sobre o por que de não estarmos juntos agora, mas antes da cortina baixar estaríamos juntos.
Se fosse um filme o funcionário público eleito pela população iria para as câmeras, (para dar o exemplo), e diria: vou doar mais da metade do meu salário para instituições de caridade, porque é realmente muita grana pelo pouco que eu conto que faço. No filme um jornalista noticiaria com critério e o dono da emissora colocaria em horário nobre.
Dependendo do filme todos os protagonistas seriam assassinados e essa história seria dada como se nunca tivesse acontecido.
Nós fizemos um filme juntos, não fizemos?
Está certo que talvez seja um curta, dado que talvez culmine em positivo e assim nos poupamos de desfechos desagradáveis.
Não deixarei que neste filme ocorra uma rápida sucessão de imagens que mudam a cada dois ou três segundos ou menos.
Se fosse um filme um sujeito alto, dotado de uma autoridade incomum, bradaria para uma rapaziada sem foco: “você não vai fazer nada pela sua pátria se morrer por ela. Você só vai fazer alguma coisa pela sua pátria se você matar o outro FDP por ela”.
Alguém exclama: corta!
O sujeito alto, cuja autoridade ninguém contesta, prossegue: “escolhi esse púlpito para que todos vocês possam ver o grande filho da puta que eu sou”.
O cenário é desmontado, as pessoas debandam e resta um assistente, que diz sem medo para a figura de dois metros de altura: o senhor tem que sair. Não estamos rodando um filme de época.
- E que época é esta em que nos encontramos?
Ninguém sabe a resposta.
Se fosse um filme alguém saberia.
SFUF não precisaríamos nos explicar. Usaríamos siglas e o excesso de cortes rápidos aqui perderiam a vez, pois essa epidemia de curta duração torna a atenção deficiente, torna todos os nossos relacionamentos e percepções superficiais e insatisfatórios.
Ah, S.F.U.F. de ficção científica, um homem entocado num sobrado na Vila Guarani recebe quatro senhoras para o chá da tarde e lhes explica que uma das razões pela qual a Terra ainda não foi invadida por civilizações bélicas de extraterrestres é o grande medo que eles têm das naves dos Arcturianos. Elas são como obras-de-arte tecnológicas, estando muito além de tudo o que tenha sido mencionado.
- Como são os Arcturianos? – indaga uma das senhoras.
O homem, que usa uma boina e que, quando não exala segredos estelares, cantarola, cantarola o dia inteiro, nem os vizinhos agüentam, responde:
- Os Arcturianos são fisicamente pequenos e esbeltos, têm mais ou menos um metro, um metro e trinta centímetros de altura.
Uma outra senhora, de cabelos castanhos, inclina sua curiosidade em saber se são poderosos.
A luz, na sala, vem da janela. O anfitrião coloca açúcar na xícara e depois externa:
- Os arcturianos são uma raça pacífica. Não se envolvem com a guerra há um grande período de tempo e conseguem se manifestar na terceira dimensão. Tem também a habilidade de se protegerem, bem como suas naves, porém não estão envolvidos a nada que possa parecer alguma forma de conflito. Se eles encontram um problema, podem se desmaterializar de imediato, portanto, qualquer objeto projetado em sua direção, simplesmente passará através deles sem causar dano. Muitas civilizações extraterrestres estão aprendendo a fazer o mesmo.
Antes de sair, uma delas externa para as outras: nunca vi um filme de ficção científica assim.
Poderia ser um filme de qualquer coisa.
Sim, acredite, nada muito quadradinho, um filme em duas partes com um letreiro entre as partes: “não deixe que a sinapse de seu cérebro fique no caminho entre você e Deus”.
Se você um filme de arte faríamos sexo como dois condenados.
E se, ao invés, uma comédia romântica, iríamos de carro até as termas do Oiapoque, lembrando de músicas velhas, comendo pipocas, acho até que em algumas cenas apareceria um bicho de estimação.
Se fosse um drama eu te visitaria no hospital. Ao chegar, e somente a título de descontrair, depois das flores e dos beijos, com minha voz de taquara seus ouvidos escutariam:
- Estás ainda mais bonita! Sabe, quando vinha para cá, uns amigos me convidaram para um churrasco, mas eu recusei. Vim direto te ver.
- Se fosse ao contrário – diria você, (visto estarmos num filme) – eu não pararia nem em sinais vermelhos.
Fala isso e sorri, eu mais ainda, pensando que esta foi a coisa mais bonita que já me disseram.
Talvez seja um drama light e ela vai ficar boa.
Há uma TV no quarto. Está passando um filme. Num balcão improvisado um homem de bem discursa. Se fosse um filme, homens assim seriam ouvidos. Enquanto procuro o controle remoto para colocar o som, ela quer saber das notícias mundiais, quer saber das barbáries no Iraque e na África. Encolho os ombros enquanto aciono o controle.
O orador reúne firmeza e elegância ao falar.
Neste novo século - diz ele - vamos encarar e subjugar novas formas de agressão, ódio, ignorância e maldade e nossa vigilância face a opressão e ao terror global será inigualável a qualquer outro momento da história humana. Aos inimigos da liberdade, aos inimigos da democracia e da própria humanidade, dizemos esta noite com uma só voz: não há canto tão remoto nesta Terra, nem caverna tão escura, que os proteja de serem descobertos, revelados e eliminados.
Nossas mãos se entrelaçam.
Na tela surgem as palavras The End.
Se fosse um filme um rosto amigável apareceria de surpresa no quarto, indagando:
- Oh, você vai voltar?
E eu perguntaria:
- O que é voltar? Não existe volta, cidadão, ir é a única direção.
Se fosse um filme, seria um rio. "Rios são caminhos que andam".
(Imagem: Leonardo da Vinci, Bosque de Árvores, 1508. Giz vermelho em papel Royal Collection, Reino Unido.)