UM LINDO VÔO DE LIBERDADE
Havia várias laranjeiras e tinham funções diversas, mas a mais alta era o meu caminho para a liberdade .
Ao chegar ao topo, depois de muito esforço pra espantar o medo e muita indecisão, eu me sentia desligada de tudo que me prendia àquele mundo restrito e cheio de proibições e era com se estivesse a quilômetros daquele chão. Nessa hora, respirava vitoriosa e plena de mim mesma. E me sentia liberta e dona do meu destino.
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Esta segunda-feira começou com um céu cinzento e jeito de inverno. E com uns silêncios evocadores de coisas de não lembrar. Da hora de acordar a hora de sair de minha cama , já percorri minhas habituais trilhas que me levam a muitos lugares e a poucas perspectivas. Assim como um ator em seu cenário de papelão, onde ele sabe que aquela árvore lá no fundo não existe de verdade, é só uma idéia de árvore. E que aquele caminho florido, com um lindo lago fazendo a curva, termina em um espaço escuro, com cheiro de mofo e teias de aranha, em um prédio qualquer.. Havia um placo na minha vida, quando eu era outra pessoa e ia tocar piano e ficava assustada com aquelas folhagens de tecido de um verde desbotado, com uns anjinhos amarelecidos e apáticos, que lá estava já há muitos anos, esquecido por todos e ali permanecendo como parte de um passado que ninguém sentia necessidade de apagar. E eu, meio assustada nos meus nove anos de criança , encontrava ali meu segundo despertar para o mundo que até pouco tempo se resumira a uma grande e velha casa, cheia de portas, um belo arvoredo, meu pai, minha mãe, meus avós e a idéia de que tudo era muito longe , lá de onde às vezes surgiam pessoas muito bem vestidas, parentes da cidade grande, que nos esmagavam com sua superioridade, suas lindas roupas e eram quase aquelas figuras dos filmes de sábado à noite, ou das matinês de domingo à tarde.
O primeiro contato com o mundo fora a ida à escola. E eu queria muito aprender a ler, e por mais que tivesse esquadrinhado os escritos do Correio do Povo, que às vezes meu pai comprava aos domingos, não conseguira decifrar como é que aquele milagre se engendrava.
Voltei ao escuro palco. Um cheiro de umidade e mofo paira no ar e eu me sinto dominada por este espaço enorme, um salão que termina em dois palcos , um em cada ponta. Por que dois? Uma semibreve vale quatro tempos, a mínima, dois, e as teclas eram lisas e amareladas, e eu amava estar ali, diante daquele piano que era um instrumento musical, mas que eu adivinhava seria também o instrumento pelo qual eu sairia em vôo magnífico daquele chão embarrado de nosso quintal, das proibições de minha mãe, olharia o arvoredo lá de cima, conheceria lugares antes só vislumbrados ao subir na mais alta árvore de onde eu perscrutava os mistérios da vila, as casas do centro, tanta coisa a conhecer . Seria tão bom estar de novo no alto daquela árvore, a mais alta laranjeira de ver bem longe, seria bom...
Você tinha sua pedra e eu, de repente lembrei da minha velha árvore na qual eu subia com muito medo de cair (cuidado, não vá cair daí de cima), um medo que me ensinaram e que eu, sempre muito obediente, fiz questão de aprender. Daria tudo para poder estar lá novamente e agora então, eu subiria e olharia novamente as casas lá do centro da vila, respiraria como criança aqueles ares, a plenos pulmões,sentindo-me dona do meu destino e talvez me jogasse lá de cima, um lindo vôo de liberdade, e matasse pra sempre o temor de estar viva, o temor de ser feliz, o temor de dizer não ao que me sufoca aos poucos. Seria bom...