MINHA AMIGA CHARLOTTE

Quando eu fazia Filosofia em Belo Horizonte, por quase um ano tive uma barata de estimação. Seu nome era Charlotte. Ela era enorme, tinha uma mancha branca na asa esquerda e antenas incrivelmente grandes, que captavam a minha presença em qualquer lugar que eu estivesse no apartamento. À noite, quando eu chegava da faculdade, ela subia na minha cama e ficava me esperando em cima do travesseiro. Toda noite era a mesma coisa. Eu me deitava e ela ficava lá, me olhando, serena, e eu lhe contava sobre o meu trabalho, minhas aulas, minhas angústias.

Ela andava livremente pelo apartamento, mas eu sabia onde encontrá-la, conhecia sua rotina, que era bem simples. Seu lugar preferido era embaixo de uma lasca de madeira na terceira prateleira do armário da cozinha. O prédio era muito antigo, da década de 40, e a cozinha era no fundo, escura, úmida, só com uma janelinha mixuruca dando para o fosso central do prédio, que mais parecia um abismo do inferno: um ambiente que Charlotte simplesmente adorava. Era ali que ela passava a maior parte do tempo.

Todo dia pela manhã eu colocava água no fogo para fazer café, ia ao armário e levantava a lasca de madeira para ver se estava tudo bem com ela. Encontrava-a sonolenta, com as antenas abaixadas e as patinhas imóveis; mas eu sabia que ela me via e ficava feliz com a minha presença. Ela era minha amiga. Minha única amiga.

À tarde ela gostava de passar um tempo no cesto de roupas sujas. Ela amava especialmente um camisão velho e encardido que eu vestia para dar faxina no apartamento e que, depois de usado, ficava uns quatro ou cinco dias fermentando no cesto. Frequentemente eu a encontrava enroscada nesse camisão, na região do sovaco, adormecida como um bebezinho. Ela era muito linda.

Mas o momento mais bonito da nossa relação foi quando, numa manhã de maio, fui à cozinha, levantei a lasca da prateleira e descobri que ela tinha tido filhotes. Eram centenas deles, minúsculos, parecidos com a mãe. Charlotte estava feliz da vida, com as antenas levantadas, em movimento, as patinhas agitadas, certamente me apresentando aos seus rebentos. Meus olhos se encheram de lágrimas. Coloquei farelo de pão e queijo picadinho para eles e fui trabalhar, emocionado.

Ao voltar para casa, naquela noite, descobri que tinha visita. Era minha mãe, que tinha pegado a chave na portaria e estava dando uma faxina no apartamento. Ela já tinha feito isso antes e nunca descobrira Charlotte, por isso não me preocupei. Cumprimentei-a e fui para o meu quarto, onde não encontrei minha amiga, que certamente estava apreensiva pela presença de mamãe e resolveu ficar quieta no armário protegendo seus filhotes.

Assim que tirei a roupa e me deitei, ouvi um grito de horror vindo da cozinha e barulhos de alguma coisa batendo no chão. Era o chinelo de mamãe. Na hora eu gelei, e de tanto pânico, não consegui me mexer. Fiquei paralisado na cama, mudo, ouvindo mamãe gritar, e seu chinelo estalando no chão, como um chicote do capeta. Lembro-me de finalmente ter conseguido gritar: “Corra, Charlotte, corra”, e depois, como num passe de mágica, de estar em pé na cozinha, nu, tremendo, como um zumbi da meia-noite.

Naquele momento, à minha volta, tudo ficou branco, leitoso. “Só pode ser um pesadelo”, pensei. Mas não era. No chão, inerte, jazia o corpo de minha amiga.

Gritei desesperado: “Não, não!”, e chorei, chorei... Mamãe mantinha-se de pé, com o chinelo na mão, assustada com a minha reação. Olhei-a com um ódio mortal, peguei uma vassoura e fui para cima dela. Foi Deus que segurou minha mão, porque naquela hora, com tudo que eu estava sentindo, eu poderia ter assassinado minha própria mãe e jogado seu corpo no fosso do prédio. Mas não fiz isso. Soltei a vassoura antes de cometer uma loucura e desabei no chão, aos prantos, com a cabeça tombada ao lado do corpinho destroçado de Charlotte. Do seu ventre saía uma pasta amarelada brilhante, cor de pus. Suas antenas estavam quebradas; suas asas, amassadas; seus olhinhos, opacos, frios, já completamente tomados pela morte...

Minha doce Charlotte... Minha amiga... Minha única amiga...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 18/06/2014
Código do texto: T4849980
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