Cuba libre

Quando surgiu no céu a ideia do calendário, o Todo Poderoso determinou: A década de 60 será a tal, a do balacobaco, a dourada, a do appeal, do glamour. Nessa década vai haver tantas coisas boas que o pessoal viverá o resto da vida sentindo saudades, nostalgia, recordando cenas guardadas nos arquivos da memória. Tem mais, os de outras décadas mais modernas, apesar do avanço tecnológico, sentirão uma saudade estranha de algo que não viveram. Nessa década de 60 haverá uma turma que de tanto se esbaldar, vai ficar um tanto lelé, bocó e coisa e tal. É, serão esses dez anos iluminados o recreio do planeta. Continuou o Todo Chefe arquitetando seus planos, vou liberar geral, mulheres se insurgirão contra saias longas, maiôs muito comportados e se desfarão do aperto dos sutiãs. Quem quiser que se aguente, estarão em moda os pallazzo pijamas, as calças bocas de sino, sapatos do modelo Anabela e tamancos Francesinha. Acontecerão verdadeiros e bonitos carnavais perfumados com lança-perfume. Infelizmente sei que um teimosinho vai cheirar esse perfume até cair ou morrer. Os carros mais bonitões vão desfilar pelas ruas, os rapazes se exibindo e as mocinhas suspirando. E a Lambretta? Ah, essa vai ser a alegria dos rapazes ricos, mas, democraticamente, alguns menos ricos também poderão comprar uma. Quanta música boa, nas festinhas o ponche de maçã e aqueles americanos vão encher o mundo de garrafinhas de refrigerante. Gente mais avançadinha se refestelará em repetidas doses de Cuba Libre com limão e gelo, a festança vai ser da boa, batidas de limão, de maracujá serão a pedida daquele Brasil querido e todo sacudido. Os ianques tomarão uísque, os mexicanos a Tequila. Lá na França, aqueles meus filhos metidos a gatos de loja tomarão vinho em taças de cristal. Que tudo aconteça, depois vejo como resolver os pecadinhos desses meninos. Pecar não vai faltar. E quem não pecaria vendo aquela francesa, a Brigitte Bardot? Ô menina danada. No Brasil, uma tal de Leila Diniz vai arrepiar a sociedade, lindinha essa menina. O poeta Vinícius escreverá versos de amor, apaixonados. Cantores em cada canto do mundo entrarão para a história com seus nomes gravados a tinta de ouro. Todo mundo vai dançar, beijar namorar, vocês hão de ver que maravilha de época será aquela. Vou caprichar na encomenda, continuou falando o que manda chover e fazer sol. E assim foi feito, palavra é palavra e a de rei não volta mesmo atrás.

Os bailes, falemos deles, testemunhas oculares dos fatos. Muita preparação, roupas lindas, sapatos encantadores, pulseirinhas e aneis de pequeninos brilhantes, tudo muito mimoso, pois as meninas dos anos 60 eram narizinhos atrevidos e não admitiriam o cheguei do funk ostentação. As bolsinhas delicadas iam para o baile contendo um batom clarinho e um estojinho de pó compacto. Os bailes de festas de quinze anos eram os mais cotados, os mais chiques, os mais ricos. As valsas vienenses tinham dias de glória, pompa e circunstância em uma cidade do nordeste brasileiro, Aracaju, capital do Estado de Sergipe, lugar sem preconceito musical. Depois da valsa estrangeira, em outro momento, todo mundo arrastava o pé nos forrós e ouvindo o vozeirão do Luiz Gonzaga. Voltando para o salão do baile de quinze anos (esse baile podia também ocorrer nas residências), ali estavam os pais com os olhos grudados nas filhas, entre orgulhosos e preocupados. O pai era o príncipe encantado, o primeiro homem a dançar com a debutante. Depois dele vinha um problema a resolver, dance com seu irmão, com seu tio, com seu primo. E assim, a aniversariante dançava e pensava no momento em que seria autorizada a valsar com um rapaz por quem suspirava há algum tempo sem que a família imaginasse. Quando o pai era mais esportivo, ela dançava. Quando o pai era carrancudo, voltava pra casa sem realizar o desejo e, chorava, escondido, em sua caminha de ilusões. Mas no baile tinha outras coisas, os rapazes piscavam o olho para alguma debutante e, quando correspondidos, todas as estrelas se acendiam, todos os corações se agitavam. A orquestra, para contribuir com esse clima, caprichava nos acordes do Parabéns pra você. Os vestidos de quinze anos eram muito bonitos, especiais para a ocasião. Quando o rapaz conseguia a autorização para dançar com alguma daquelas princesinhas nordestinas e lhe passava o braço pela cintura, a felicidade dos dois era um momento impossível de ser narrado. Só vivido. Mais que passar a mão ao redor da cintura, não seria permitido e havia o patrulhamento para verificar se os corpos deles se aproximavam muito um do outro. Aquele casalzinho inocente e que de coisa alguma da vida sabia, avistava o fogo da montanha sagrada e ouvia o trovão que quase assusta Moisés. Mas quem disse não haver quem ousasse? Quando o baile estava no auge, dava-se um jeitinho de escapar por uma das largas portas do clube. Encostados na balaustrada banhada pelo Rio Sergipe, os jovens, à luz do luar, trocavam beijos, ora roubados, ora consentidos. A lua, em seu belo traje de ouro e luminosidades indizíveis inspirava e, toda solidária, se escondia por detrás das nuvens. Assim o ambiente ficava na penumbra e os jovens casais protegidos. O gosto juvenil daqueles beijos inocentes, inexperientes, até hoje está entranhado na pele, registrado por todos os cinco sentidos. A orquestra, naquele instante, executava o Sabor a mi. No bailinho dos dezesseis anos de idade, as mocinhas insinuavam, os rapazes investigavam o decote com olhos trêmulos dentro de uma camiseta propositadamente leve e transparente. Lá dentro um sutiã de enlouquecer seminaristas. Aos dezessete, vendo-se que a situação exigia e, para evitar investidas, caprichava-se no zíper da jeans. Por outro lado, na praia, apareciam os biquínis. Aos dezoito anos, o talhe do cós da calça Saint-Tropez parecia sugerir algo abaixo dos seus limites. Aos dezenove, o trânsito se agitava e as línguas trocavam balas de hortelã. Aos vinte anos, todo mundo valente, perdia quase toda a timidez. Alguns botões resolviam despencar da blusa e para sempre sumirem pelo chão da praça. Quase não dava para ter paciência de esperar a boate com luz negra abrir as portas para o escuro promissor, para os sons mais modernos e para os beijos profissionais e intermináveis. O mundo aí começou a exagerar e deu no que tá dando. Estava perto dos trinta e uma moça que se prezasse não poderia completar essa idade sem casar. Assim foi que as moças do twist do hully gully, do rock’n roll, ajoelhadas perante o altar, ouviam e choravam, choravam e ouviam A noiva:

Branca e radiante vai a noiva,

logo a seguir o noivo amado.

Quando se unirem os corações, vão destruir ilusões.

Aos pés do altar está chorando,

todos dirão que é de alegria.

Dentro sua alma está gritando,

Ave Maria...

Chorará também, ao dizer o sim,

e ao beijar a Cruz, pedirá perdão.

E eu sei que esquecer não poderia,

se era outro amor a quem queria.

Aos pés do altar está chorando,

todos dirão que é de alegria.

Dentro sua alma está gritando,

Ave Maria...

Ave Maria...

Ave Maria...

AAAAve Mariaaaaaaaaaaaa.