O sol e a carona

Tenho 169 pintas pelo corpo. Eram 170, mas já faz algum tempo que extraí uma mais perigosa na perna. Não sei quem teve a péssima ideia de apelidá-las de “pintas de beleza” – certamente alguém que não tinha nenhuma. Os dermatologistas mesmo chamam de nevo (não confundir com nervo, pois só de fibras nervosas eu tenho mais de 3 bilhões pelo corpo). De qualquer forma, isso me obriga a tomar banho de protetor solar todos os dias e a amar fervorosamente os dias nublados. Mas acontece que eu estou em Brasília, e portanto tenho um sol ardido todos os dias, geralmente logo de manhã.

Era nesta situação que eu saí para mais um dia de trabalho, devidamente embalsamado com uma loção protetora. Já me preparava para atravessar a rua quando ouvi a buzina de um carro parado no semáforo. Olhei para ele e enxerguei no motorista um rosto conhecido de algum lugar. Demorei um pouco até me lembrar: era um homem que trabalhava no mesmo prédio que eu, numa lanchonete onde não estive mais que duas vezes, e isso há muito tempo. Também não me recordo de ter trocado alguma palavra com ele nessas ocasiões. Pois agora ele buzinava para mim e, se bem entendi, me oferecia uma carona. Eu e minhas 169 pintas vimos com muito bom grado aquela oportunidade de sair do sol e aceitamos.

Entrei no carro e começamos a conversar com naturalidade, como se já tivéssemos feito isso algum dia. Falamos justamente do tempo em Brasília, que até tem andado um pouco mais frio, apesar do sol forte daquela manhã. Discutimos sobre a chegada dos meses de seca e, por este caminho, fomos parar nas mudanças climáticas. Citamos alguns episódios de total maluquice meteorológica e concordamos que está cada vez mais difícil deixar de acreditar nessas mudanças.

E nisso gastamos os dez minutos que levamos até chegar ao prédio em que trabalhamos. Desci antes que ele entrasse com o carro na garagem e assim me despedi daquele pequeno homem que, ainda em nossos dias, é capaz de ajudar pessoas que não conhece.

milkau
Enviado por milkau em 16/06/2014
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