Tinha Uma Pedra No Meio do Caminho

"Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra...", trecho do poema do nosso poeta maior Carlos Drumond de Andrade que me remete à infância, mais precisamente por volta dos meus oito anos, quando tinha, segundo minha memória, a brincadeira interrompida para atender à minha mãe que me incumbia de levar à minha vó, sua mãe, o almoço. Aos resmungos, mas obediente, saia para cumprir, para mim na época, tão desagradável tarefa. Não me lembro de minha vó em outra situação a não ser anciã acamada com o pé na cova ou no leito baiano de morte, vegetando, mas sem pressa para ir dessa para melhor. Minha mãe preparava a marmita com a comida bem quente saída do fogão à lenha e a envolvia em pano de prato, dando um nó por onde eu deveria segurá-la para não me queimar. E ia eu cantando, pulando e brincando pelo caminho. Descalço, saia de casa e seguia sempre o mesmo caminho. A rua que dava na casa da minha vó era de terra batida, não era calçada. Nela tinha uma serraria, em frente da qual ficavam enormes troncos de árvores ou toras, esperando para virarem tábuas, além de muita serragem, cascas e pedaços de ripas. Bem em frente a esta serraria tinha a ponta de uma pedra, na qual invariavelmente eu tropeçava e saia catando mamona, deixando nela o tampo do meu dedão. E eu esbravejava, xingava, chorava, mas seguia para cumprir a tarefa e chegar com a comida ainda quente para minha vovozinha. Mas num certo dia, o mesmo dedo ainda ferido, quase cicatrizado, enfiei na tal pedra e, aos gritos, xingando impropérios, não me contive, voltei e decidi que nunca mais tropeçaria nela. Coloquei a marmita da minha vó sobre uma tora e, munido de um pedaço de ripa pontiagudo, comecei a escavar em volta da pedra com a intenção de arrancá-la de vez do meu caminho. Mas a pedra era como um iceberg no oceano, só mostrava a ponta, era enorme. Ainda assim não desisti da empreitada, arranquei a dita cuja, deixando uma grande cratera bem no meio da rua. Isto demandou muito tempo, o suficiente para deixar bem fria a comida da minha vó que já virara um mexido depois de tanto solavanco.

Esta foi a primeira grande pedra que removi do meu caminho, que eu me lembro. Muitas outras vieram depois e todas elas removi com sucesso. Quantas outras vierem tantas removerei.

No meio do caminho tinha uma pedra e no dela um sujeito resiliente, determinado, persistente e vitorioso.

marciusantos
Enviado por marciusantos em 14/06/2014
Reeditado em 23/09/2020
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