O ÁLIBI

e souza

Em nossa casa tivemos um filhote de jacaré em nosso quintal, e em seu cativeiro o bichinho tinha todas as condições exigidas pelo IBAMA. Meus amigos da escola vinham para minha casa toda semana, era uma farra, mas o animal cresceu e não era justo mantê-lo em um lugar que não fosse seu habitat, nosso pai o entregou ao órgão responsável e meus amigos não apareceram mais, até hoje não sei por quê? Mas eu sobrevivi. Tivemos outros animais, cães, filhotinhos de frangos, passarinhos e um gato, com o nome de mimo, esse nos ensinou algumas lições e a minha preferência é pelos cães, pois são menos destruidores de lares, são verdadeiramente fiéis. E por falar em gatos, uma conhecida minha, adotou um gatinho que encontrou dentro de uma caixa de sapatos que estava na rua. Dentro da caixa haviam três gatinhos de olhos fechados e quase sem nenhum pelo e ela se apaixonou pelo mais clarinho e que parecia ser o que mais precisava de ajuda, pois era o único que não se mexia, mas estava respirando. Seu marido e ela o levaram para casa, o bichinho foi crescendo e foi ficando a cada dia mais branquinho por inteiro, parecia que eles estavam criando um pacote de algodão. Era sem dúvida um belo animal, sua aparência divina contrastava com seu temperamento demoníaco. Primeiro foram as cortinas da sala, depois os pés das cadeiras, o sofá e tudo mais que encontrava pela frente. Ainda bem pequeno, o gato dava sinais muito claros que não fazia questão nenhuma de ser simpático ou gostar do homem. Pulava em suas pernas e arranhava, mordia, sem qualquer razão aparente, a não ser o prazer de atacar por atacar. Ele chegou a pensar que estavam criando uma jaguatirica albina, e não um gato, tal era sua ferocidade. Já a mulher era arranhada somente quando ia livrar o marido das garras do felino, e perguntava sempre o que ela havia feito para o gatinho, e ouvia sempre a mesma resposta: ‘eu não fiz nada!’ O gato não podia vê-lo sem que o atacasse. Em um domingo, ficaram a sós, ele e o gato, ele lia tranquilamente seu jornal, quando num ato impensado, sem motivo algum o bichano atirou-se sobre o jornal, fazendo dele picadinho e suas unhas arranharam os braços, o rosto e o resto e numa reação de pura defesa, deu-lhe um safanão e o bicho num grito de dor caiu do outro lado da sala, lá ficou imóvel. ‘Meu Deus, matei o gato!’ Mas para sua surpresa, cinco segundos depois e bicho se levantou lentamente e foi para baixo da cama, de onde não saiu sequer para se alimentar. A mulher chegou, quando o gato ouviu sua voz tratou logo de pular em seu colo, e tremia muito só de olhar aquele homem tão próximo. A desconfiança de sua mulher aumentou: ‘O que você fez para o gatinho? Ele está tremendo só de olhar para você’, e a resposta não poderia ser outra ‘Não fiz absolutamente nada!’ Os dias foram passando e o bicho não chegava perto dele, nem por decreto. Sua mulher o chamava de mentiroso, pois tinha certeza que havia feito algo de muito ruim para o gato e tratou de espalhar que o marido não gostava do gato, ela falou até para o porteiro do prédio, ela dizia que tinha medo que o marido matasse o “lindinho”. Bem, a vida do sujeito virou um verdadeiro inferno desde que quis dar uma vida mais digna para aquele ‘ingato’, quero dizer, ingrato. Como era de costume, saia de manhã comprava o jornal e o lia em casa, e esse domingo não foi diferente, estava lendo na varanda, o dia estava ensolarado, céu de brigadeiro e como milagre o gato apareceu e ficou ali bem perto e deitou-se para pegar sol. Nesse instante passou um lindo Bem-te-vi na grade da varanda, ele olhou para o gato e notou que ele estava em alerta e se preparando para o bote. Ele ficou imóvel e gelado, imaginando o desfecho daquele ataque. Rosnou pelo nome do gato tentando chamar-lhe atenção, o gato olhou profundamente em seus olhos e sem piscar. O homem percebeu um brilho maligno no olhar do gato, as pupilas estavam dilatadas e por um instante imaginou tê-lo visto sorrir, tão diabólicamente que o bicho parecia ter piscado numa despedida. O pássaro caminhava distraidamente, sem perceber que cada um de seus movimentos eram medidos por eles. O gato voltou seu olhar para a ave e após três ou quatro reboladas saltou sobre ela. ‘lindinho!!!’ Gritou o homem tentando impedir aquele ataque fatídico. A ave sequer teve tempo de ver de onde partiu o grito, bateu asas e desapareceu deixando para trás um rastro de penas. Quanto ao gato, o homem só conseguiu ouvir seu miado de terror que se perdeu pelo ar, vendo assim o solo cada vez maior. ‘- Não acredito!’ E preferiu não ir até a sacada para ver o estúpido animal que se jogara no vazio. Já lá embaixo o porteiro estava ao lado do corpo daquele animal que jazia na pedra sabão e perguntava o que poderia ter acontecido no apartamento do oitavo andar. O homem explicou o ocorrido e o porteiro colocou em dúvida perguntando: - O senhor tem certeza? – Mas é claro que tenho, ou você acha que eu teria coragem de... O homem não teve coragem de pronunciar o restante. O porteiro entregou-lhe o cadáver e em seus braços lembrou que pela primeira vez segurava o animal no colo sem ser arranhado e por um instante sentiu pena e saudade dos ataques. Estava tentando se concentrar no que diria a sua mulher. Para seu desespero ela não acreditou em nada do que disse, mas era a mais pura verdade e ela o acusou de assassino e se podia fazer aquilo com um animal que dirá com pessoas. Todos os seus argumentos foram inúteis. Em uma semana ela voltou para casa de seus pais. Ele devolveu o apartamento alugado e pagou a multa contratual e foi morar com sua mãe. Por algum tempo ficou remoendo os fatos e chegou a ficar com pena do estúpido animal, no entanto, começou a lembrar dos detalhes que antecederam aquele instante fatal, “as discussões com a mulher, as promessas de vingança, sempre da boca para fora, a preparação para o ataque a ave, seu olhar antes do salto mortal e principalmente aqueles cinco sinistros segundos de sua meio morte”. Chegou a conclusão que o gato se matara de propósito, pois havia planejado tudo desde o momento de sua misteriosa ressurreição. O bicho ficou alimentando seu ódio por ele, arquitetou a vingança avassaladora que nada seria capaz de salvá-lo. Tudo isso é tão verdade que ele não se atirou simplesmente da sacada, assim como faria um simples suicida, o gato precisava de um motivo para fazê-lo. A ave foi seu álibi, o bicho sabia a todo instante que jamais conseguiria pegar o pássaro e que o homem seria acusado por sua morte. O último olhar foi sua confissão cínica e diabólica, que dali em diante o homem estaria irremediavelmente perdido e condenado. Faz três anos, o homem nutre ira a gatos, mas acredita num julgamento imparcial. Ele acredita que felinos são criaturas demoníacas e muda de calçada quando aparece um gato na sua frente. Bem, essas são histórias desses felinos, namoradores barulhentos e quase delinquentes. É isso aí.

e-mail: edsontomazdesouza@gmail.com

E Souza
Enviado por E Souza em 14/06/2014
Reeditado em 17/10/2014
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