EU E ZUMBI CORREMOS DA ESCRAVIDÃO
Eles mostram preocupação, dizem que eu sou muito jovem pra amar um homem mais velho, pra saber o que realmente quero, de contrapartida, me chamam de nomes estranhos, depois, dizem que vida real não é uma poesia.
Quanto a mim? - Respondo utilizando frases prontas ou então concordo com tudo, enquanto minha alma rebelde se esconde em um emaranhado de muitos eus.
Eles me colocam no topo para depois me jogarem de lá. Talvez, Maquiavel esteja certo: são todos uns interesseiros.
Preciso suportar a dor um pouco mais, preciso abrir caminhos para a nova geração que está pulsante e ansiosa por liberdade incondicional.
Eles acham que só entendo de assuntos triviais por causa da idade. Mas meu homem meu ensinou tudo; política, moda, arte, filosofia, ciência, amor, fuga, drogas e suicídio. Ele não me guardou das frustrações, me colocou pra sofrer junto, de algum modo, a dor precisa ser sentida.
vejo ofensas todos os dias, mas o que mais me marcou foi a pichação racista na estátua do Zumbi dos Palmares. Jogaram tinta branca, tinta pura, tinta sangue bom, tinta colonizadora, tinta conservadora, de direita. Eles são incapacitados de decidirem alguma coisa, eles me colocam de novo ao topo para depois me empurrarem de lá. E se vou contra, sou comunista, sou o demônio que quer destruir o BR. Assim como Zumbi, corro da escravidão.
Mas meu homem me ensinou a não dialogar com essa gente. Me disse que eles não saberiam viver o livre mercado, são ovelhas guiadas por pastores, são intolerantes, fascistas, hipócritas e se passam por desfavorecidos com o intuito de atingir as classes menos favorecidas que são sempre facilmente enganadas por meia duzia de palavras otimistas com comparações banais e entonações de voz dançantes para prender a atenção do povo que aclama por atenção.
Violento mesmo são os discursos em prol dos bons costumes. Meu homem morreu por isso. Hoje tenho uma esperança perdida, uma dor incapaz de amenizar, um grito silencioso, quase no universo, que, muitas vezes, tem o desejo de ecoar até outros povos pedindo socorro, mas o feedback não existe, nunca existiu. Uns se vão, outros morrem aos poucos, todos os dias; de fome, de injustiça, de extinção e permanecem os corpos sem vida, sem brilho, sem cor, sem nada. Apenas sendo guiados por uma matriz central onde tudo é pensado e calculado, uma burocracia invisível e tridimensional. E se por um acaso a vida pulsar, são facilmente identificados e torturados, são vistos como fora do eixo, chacota dos tempos modernos, príncipes do mal e o afrontamento é abdicado sem escolhas.
Sou molestado todos os dias, são agressões que cegam a alma, não sei porque ainda estou enxergando. Meu homem estava cego, mas eu ainda via. -Cegarem quem me ensinou a ver com outros olhos.
Na memória apenas coisas avulsas, galhos secos, chão vazio e rachado, pés descalços, carros desbotados, asfaltos velhos, lua iluminando nossos lábios e nossos corpos nus e entregues , armas de fogo, jaquetas de couro, cigarros, quilombos, terços... Lembro-me perfeitamente do copo de veneno com um outro copo de água benta ao lado e você vendando meus olhos, pendido para que eu tomasse um deles, me ensinando a arriscar.
Mas, de repente, o vazio tomou conta de você, a audácia sumiu, os vícios também. E não havia nada que eu pudesse fazer para disfarçar o clima estranho. tentei te colocar em meu mundo, mas você já não via mais, a escuridão estava inquebrável, minha luz nunca foi suficiente para salvar ninguém. Sempre preferi o suicídio a morte lenta. Você sabia disso, quis me homenagear, mas fique sabendo que não teve graça. Me sinto sozinho, acordo todas as noites pensando ouvir sua voz, mas não há você, exceto em meus sonhos. -Não sei se eles conseguiram me escravizar. De que adianta ter dois olhos livres sem alguém pra me guiar?