Ramon na Copa

Ramon não assistiu ao primeiro jogo do Brasil. Nunca gostou de futebol, e desde o início foi contra essa Copa, “um desperdício de dinheiro, uma vergonha”, dizia. Mas o que vale sua opinião no país do futebol?

Sua família foi para o sítio toda de verde e amarelo e ele ficou sozinho em casa. O jogo começaria às 17 horas; eram 16:05, mas como os supermercados só fechariam às 16:30, ele resolveu sair para comprar uma garrafa de vinho tinto, uma pizza portuguesa, figos secos e Nutella. Esse seria o seu lanche da tarde, regado a um bom azeite espanhol, na companhia de Beatles, Nina Simone e Vivaldi. Depois leria mais um capítulo de 'Os Demônios', de Dostoiévski, e assistiria a um Hitchcock dos anos 40: 'Interlúdio', com Ingrid Bergman e Cary Grant. Tudo merecido: o lanche, as músicas, o livro, o filme e a solidão. Sem jogo. Um programa e tanto para um cara (estranho) como Ramon.

No supermercado, às 16:20, era uma loucura só. Os atrasados corriam para a fila dos caixas com seus carrinhos cheios de cerveja, desesperados, com medo de não chegarem a tempo para o jogo.

Ramon pegou suas coisas e se dirigiu lentamente para a fila, que estava grande, mas ele nem ligou. Entrou e esperou.

Quinze minutos depois, um rapaz de vinte e poucos anos saiu do corredor de bebidas empurrando um carrinho com quatro caixas de cerveja e parou bem perto de onde estava Ramon. O jovem estava nervoso, não acreditava que teria que pegar a fila lá atrás, como qualquer um; coçava a cabeça e bufava como um touro acossado. “Coitado”, pensou Ramon. “Sua galera já deve estar toda reunida no local combinado, animada, esperando a cerva, e ele aqui, louco para pagar e ir embora”.

Foi quando Ramon resolveu fazer a sua boa ação do dia. O rapaz já tinha se colocado no final da fila, inconsolável, quando ouviu uma voz chamando-o. Era Ramon propondo que trocassem de lugar. Todos na fila olharam para ele, incrédulos. O rapaz sorriu e aceitou na hora, feliz da vida. Para se justificar, Ramon disse que não ia assistir ao jogo, que não gostava de futebol. Ninguém ligou. “Foda-se”, devem ter pensado.

Com os olhos brilhando de alegria, o rapaz agradeceu e logo foi atendido. Pagou, pegou sua cerveja e foi embora.

No outro dia, à noite, feliz pela derrota vergonhosa do Brasil no primeiro jogo da Copa, Ramon foi escarafunchar um pouco a internet antes de dormir e, como sempre fazia, entrou no site da funerária 'Paz Eterna' para ver as novidades no Obituário. Levou um susto ao reconhecer, numa das fotos, o rapaz que ele tinha ajudado no supermercado. “Deve ter sido acidente”, pensou. Dito e feito. Cinco minutos antes do início do jogo, um caminhão saiu de uma estrada vicinal e entrou na pista, de repente. A batida foi violenta. Voaram pedaços de corpo, sangue e cerveja para todo lado.

Naquela noite, Ramon não conseguiu dormir. Estava perturbado. Pensava que se não tivesse oferecido seu lugar na fila para o rapaz ele não teria morrido. Ou teria? O fato é que Ramon se culpava. “Se o rapaz tivesse se atrasado um pouco no supermercado, o caminhão não estaria na sua frente quando passasse pelo local, não teria havido o acidente e ele não teria morrido”, resmungava Ramon de si para si, remoendo a culpa no peito.

Culpa? Bobagem, Ramon. O rapaz tinha que morrer e morreu. Você foi só um instrumento do destino, nada mais.

Pobre Ramon. Mais essa agora...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 13/06/2014
Código do texto: T4843349
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