Como Lampião
virou bandido
1. Tenho lido e ouvido, ao longo da vida, muitas histórias sobre Lampião. Umas interessantes, outras horripilantes. Quando tinha de oito pra nove anos, nos bate-papos domésticos, ouvi, muitas vezes, meus avós maternos contar como o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva aterrorizava o sertão cearense.
2. Meu avô Paulino, graduado funcionário da Estrada de Ferro do Estado do Ceará, morou, com a família, em algumas cidades por onde Lampião passou com sua truculenta equipe de sicários, fazendo misérias.
3. O avô, com seu cavanhaque mui bem cuidado, relógio de algibeira de ouro, botas de couro de bezerro, macias e na cor marrom, farda caque e quepe, falava das façanhas criminosas de Lampião que ouvira pelo sertão afora, nas suas visitas rotineiras às cidades por onde os trens passavam e o bandoleiro, também.
4. Minha vó Eulina contava, que, enquanto Lampião permanecia com seus cabras na cidade, velas eram acesas e santos invocados em repetidas orações que mais pareciam lamentos. Quando a ventania lampiônica "se desfazia", dizia minha vó, a calma voltava a reinar, ouvindo-se, apenas. o disse me disse dos moradores, ainda assustados.
5. E eu, sem a exata noção do mal que o famoso cangaceiro causava ao povo de boa parte do nordeste, por incrível que possa parecer, dizia-me chateado por não ter conhecido Lampião. Virgulino morrera no dia 28 de julho de 1938, na fazenda Angicos, no interior de Sergipe, pela força militar volante comandada pelo tenente João Bezerra.
Em julho de 1938, eu tinha 4 anos e vivia feliz e saudável correndo pelos campos de um sertão ainda muito calmo e acolhedor, lá nos cafundós do Ceará.
6. São muitos os livros que contam a história de Lampião. E, com certeza, outros livros virão, narrando, com mais detalhes, a vida daquele que por muita gente, ainda hoje, é considerado o maior bandido do Brasil de todos os tempos; o que não é verdade. Logo direi por quê.
7. Sempre que se fala ou se escreve sobre Lampião, inapelavelmente esta pergunta é feita: afinal, por que Virgulino virou bandido? Tem prevalecido, como principal motivo, a vingança pela morte de seu pai, o sertanejo José Ferreira, idos de 1920, supostamente assassinado por José Saturnino e José Lucena. Crime que teria sido encomendado pelos apatacados da época, e que permaneceram impunes.
8. Um livro reunindo crônicas de Graciliano Ramos sobre o cangaço, escritas entre 1938 e 1941, acaba de chegar às livrarias. Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, doutores em literatura, seus organizadores, deram ao livro este título: Cangaços.
9. O velho Graça, em belos textos, sempre no seu singular estilo, fala sobre o homem Lampião, dando, porém, ênfase maior às injustiças e maus-tratos que o jovem Virgulino sofrera, vítima - como tantos outros - da socidade cruel e desigual que dominava o sertão nordestino, deixando-o revoltado.
10. Fugindo da velha versão da simples vingança pela morte do pai, e só por isso, Graciliano vai mais além e diz, assim, porque Virgulino tornara-se um sanguinário bandido: "O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou.
Mas quando viu o alastrado morrer e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia no mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações da cabra preta, tomou o rifle e ganhou a capoeira."
E lembra que enquanto velhos amigos seus "subiram pro Acre" e outros, "os mais moços, desceram para São Paulo", Virgulino "foi ao Juazeiro, confessou-se ao Padre Cícero, pediu a bênção de Nossa Senhora e entrou a matar e roubar."
11. Aqui, pois, a resposta, bem mais abrangente, que Graciliano Ramos dá aos que continuam querendo saber a razão pela qual Virgulino Ferreira, antes um cidadão trabalhador, virara o bandido Lampião, no seu tempo, o mais temido, nas quebradas do sertão.
12. Deixou, sim, de ser o maior bandido do Brasil de todos os tempos, como querem alguns historiadores. Há muito Lampião foi superado em crueldade e bandidagem sem limites. Basta acompanhar o noticiário policial do nosso dia a dia para se ter, com extrema facilidade, a certeza de que os criminosos do Século XXI deixam o ex-rei do cangaço no chinelo, como diz o povão.
virou bandido
1. Tenho lido e ouvido, ao longo da vida, muitas histórias sobre Lampião. Umas interessantes, outras horripilantes. Quando tinha de oito pra nove anos, nos bate-papos domésticos, ouvi, muitas vezes, meus avós maternos contar como o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva aterrorizava o sertão cearense.
2. Meu avô Paulino, graduado funcionário da Estrada de Ferro do Estado do Ceará, morou, com a família, em algumas cidades por onde Lampião passou com sua truculenta equipe de sicários, fazendo misérias.
3. O avô, com seu cavanhaque mui bem cuidado, relógio de algibeira de ouro, botas de couro de bezerro, macias e na cor marrom, farda caque e quepe, falava das façanhas criminosas de Lampião que ouvira pelo sertão afora, nas suas visitas rotineiras às cidades por onde os trens passavam e o bandoleiro, também.
4. Minha vó Eulina contava, que, enquanto Lampião permanecia com seus cabras na cidade, velas eram acesas e santos invocados em repetidas orações que mais pareciam lamentos. Quando a ventania lampiônica "se desfazia", dizia minha vó, a calma voltava a reinar, ouvindo-se, apenas. o disse me disse dos moradores, ainda assustados.
5. E eu, sem a exata noção do mal que o famoso cangaceiro causava ao povo de boa parte do nordeste, por incrível que possa parecer, dizia-me chateado por não ter conhecido Lampião. Virgulino morrera no dia 28 de julho de 1938, na fazenda Angicos, no interior de Sergipe, pela força militar volante comandada pelo tenente João Bezerra.
Em julho de 1938, eu tinha 4 anos e vivia feliz e saudável correndo pelos campos de um sertão ainda muito calmo e acolhedor, lá nos cafundós do Ceará.
6. São muitos os livros que contam a história de Lampião. E, com certeza, outros livros virão, narrando, com mais detalhes, a vida daquele que por muita gente, ainda hoje, é considerado o maior bandido do Brasil de todos os tempos; o que não é verdade. Logo direi por quê.
7. Sempre que se fala ou se escreve sobre Lampião, inapelavelmente esta pergunta é feita: afinal, por que Virgulino virou bandido? Tem prevalecido, como principal motivo, a vingança pela morte de seu pai, o sertanejo José Ferreira, idos de 1920, supostamente assassinado por José Saturnino e José Lucena. Crime que teria sido encomendado pelos apatacados da época, e que permaneceram impunes.
8. Um livro reunindo crônicas de Graciliano Ramos sobre o cangaço, escritas entre 1938 e 1941, acaba de chegar às livrarias. Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, doutores em literatura, seus organizadores, deram ao livro este título: Cangaços.
9. O velho Graça, em belos textos, sempre no seu singular estilo, fala sobre o homem Lampião, dando, porém, ênfase maior às injustiças e maus-tratos que o jovem Virgulino sofrera, vítima - como tantos outros - da socidade cruel e desigual que dominava o sertão nordestino, deixando-o revoltado.
10. Fugindo da velha versão da simples vingança pela morte do pai, e só por isso, Graciliano vai mais além e diz, assim, porque Virgulino tornara-se um sanguinário bandido: "O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou.
Mas quando viu o alastrado morrer e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia no mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações da cabra preta, tomou o rifle e ganhou a capoeira."
E lembra que enquanto velhos amigos seus "subiram pro Acre" e outros, "os mais moços, desceram para São Paulo", Virgulino "foi ao Juazeiro, confessou-se ao Padre Cícero, pediu a bênção de Nossa Senhora e entrou a matar e roubar."
11. Aqui, pois, a resposta, bem mais abrangente, que Graciliano Ramos dá aos que continuam querendo saber a razão pela qual Virgulino Ferreira, antes um cidadão trabalhador, virara o bandido Lampião, no seu tempo, o mais temido, nas quebradas do sertão.
12. Deixou, sim, de ser o maior bandido do Brasil de todos os tempos, como querem alguns historiadores. Há muito Lampião foi superado em crueldade e bandidagem sem limites. Basta acompanhar o noticiário policial do nosso dia a dia para se ter, com extrema facilidade, a certeza de que os criminosos do Século XXI deixam o ex-rei do cangaço no chinelo, como diz o povão.