O bêbado dormia o sono dos justos. A garrafa de cachaça, já vazia, testemunhava que ele já não sentia o frio daquela noite gelada. As calças rotas deixavam à mostra suas partes íntimas. Do bolso saía uma carteira rasgada, na qual estavam algumas fotos amareladas pelo tempo e um recorte de jornal. Na foto maior estava uma mulher de uns trinta anos e, na menor, duas crianças. No recorte do jornal estava um homem sendo cumprimentado por uma autoridade pelo lançamento de mais um livro. Na foto ele era um homem bonito, diferente do farrapo humano em que se transformara. Todas essas intimidades foram analisadas pelo mendigo que, ao ver o bêbado dormindo, tentou roubar seus pertences. Primeiro lhe tirou o tênis, depois o pente, sem vários dentes. O cinto não conseguiu tirar, visto estar o homem, num último gesto de dignidade , segurando-o junto com o cós da calça que, a bem da verdade, de nada lhe adiantava, tão rasgada estava. Com todo aquele movimento o bêbado acordou e, cambaleando, tentou manter-se de pé. - Me dá essa carteira, cara! – gritou para o ladrão. É tudo que eu tenho. Aí estão as minhas princesas e a minha rainha. Eu perdi o trono, não tenho mais o palácio, mas elas continuam soberanas. Com esse discurso o mendigo se comoveu e devolveu-lhe os pertences. - Desculpe, amigo – disse agora o ex-ladrão. Tu tava tão chumbado que não ia precisar de tênis pra ir a lado algum. - Tá desculpado. Pode ficar com o tênis. Eu não estou mesmo em condição de andar. - Obrigado. Pra mim é de muita serventia. Tô voltando pro Norte e é muito chão pela frente. Segui o meu caminho, não assistindo o final da conversa. Quando voltei o bêbado continuava dormindo e outro mendigo lhe cobria os pés com uma manta suja e rasgada, a fim de lhe abrigar do frio. Fiquei a pensar na diferença que há entre os seres humanos. Mesmo na mais extrema miséria o homem pode ser sensível ou não, pode ter caráter ou não, ser mau ou bom, ser mocinho ou bandido. Um quis roubar as poucas coisas que aquele infeliz ainda possuía. O outro se condoeu de um ser humano com os pés gelados, naquela noite fria. No dia seguinte li, no jornal, a história daquele bêbado que havia perdido o trono. Tinha sido um escritor de sucesso que perdera toda a família num incêndio. Depois desse acidente ele havia perdido o juízo, a casa, o trabalho. Agora vivia da caridade pública. Morreu naquela mesma noite devido ao frio de São Paulo. Imagino que, agora, num outro plano astral, já tenha recuperado as suas princesas, a sua rainha e o seu trono. Que continue o seu reinado.