BÁLSAMO DE FERRABRÁS
Manhã de segunda-feira. A cidade segue seu curso nas proximidades do Mercado Público: uma prostituta com olhos de ressaca sentada no banco da praça, pombos em rasantes acrobáticos, bebedores precoces de cerveja e, junto ao vão do Mercado, um bolinho humano começa a formar-se. Como outros passantes não resisti ao magnetismo da curiosidade e postei-me junto ao povo, atento às palavras do nordestino que anunciava miraculosas propriedades de um elixir de ervas: “fórmula de feiticeiros caraíbas do Amazonas” disse ele, “inventada bem antes dos primeiros portugueses atracarem por aqui” - trazendo seus navios carregados de doenças civilizatórias - arrematei em pensamento.
Pensei: os bolinhos públicos são um fenômeno ancestral. O grego Sócrates reunia povo ao seu redor para ouvi-lo, no tempo em que a filosofia andava pela rua de pés no chão. Jesus Cristo anunciou as boas novas agrupando palestinos, criando uma tradição de bolinhos de fé que atravessou os séculos. Os mascates, numa tradição que também vem de longe, inventaram os bolinhos laicos para vender mercadorias. Sem falar dos bolinhos lúdicos em torno de um dominó ou uma canastra.
Enquanto o artista da palavra desfia um rosário de padecimentos curáveis com o poder de panacéia de sua mercadoria: “espinhela caída, câimbra no sangue...”, subi um patamar no nível de abstração e imaginei um elixir bem mais potente, capaz de curar as doenças da carne e do espírito da humanidade. Nossa caminhada civilizatória de três mil anos resume-se em tentativas frustradas de endireitar uma árvore recalcitrante em permanecer torta. Não faltaram terapeutas ilustres: Jesus Cristo nos despejou um oceano de amor logo tingido de sangues fanáticos. Os terapeutas iluministas jorraram no mundo europeu doses maciças de razão e ciência para inocular as pragas obscurantistas da idade média. No século XIX Karl Marx chegou com outro diagnóstico: a civilização ocidental fora contaminada pelo vírus de classe e só da cura revolucionária nasceria das sombras alienantes, um homem novo e saudável. Já Sigmund Freud, após anos mergulhado em sua própria cabeça e na dos outros não encontrou nada alvissareiro e morreu pessimista com nosso destino. E aqui estamos em marcha rumo à barbárie: instituições corruptas, colapso ambiental, violências, misérias, egoísmos e o deus dinheiro governando a terra.
Aflora do tanque de minhas recordações a frase: “Bálsamo de Ferrabrás”. Uns dizem tratar-se de uma lenda, um licor que veio do céu em uma redoma trazida por uma pomba e que neste óleo foram consagrados os reis de França. Na Bíblia, João e Marcos fazem alusão ao bálsamo que teria sido oferecido a Jesus - que o negou - na hora da crucificação. O Bálsamo de Ferrabrás é citado também por Dom Quixote de La Mancha, que afirmou ter a fórmula na memória. “Tomando o bálsamo” sentenciou o cavaleiro de triste figura, “ninguém precisa ter medo da morte”. Quem sabe se os seus poderes não curariam este desvio da natureza chamada homem? Lembrei também do “Emplasto Brás Cubas”, invenção inconclusa do personagem de Machado de Assis destinado a “aliviar a nossa melancólica humanidade”.
O nordestino me despertou do devaneio oferecendo uma prova de seu elixir amazônico. Agradeci e entrei ligeiro no Mercado Público para comprar o peixe do almoço.