O GRUPO PREGOU UMA PEÇA NO REINO DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO

Aos poucos os convidados foram tomando seus lugares dentro do salão Nobre. O primeiro escalão: Rui irmão de Helena e Secretário de Gabinete do Governador; Ecatto primo de Helena e Contador; Carlinhos da Secretaria da Fazenda, os Nonis, Asílio da Educação; Etasso da Casa Civil; Casconcellos o Vice-Governador; Jonathan o então Prefeito de Vila Velha; Alencastro o Secretário de Administração, Dr. Honório o advogado e consultor para assuntos aleatórios da Primeira Dama; Tadilla o ex-ministro e a agora traficante de influência no reino; se acomodavam na fila do gargarejo. Os demais, como abutres, disputavam lugares de destaque para aparecer e agradar o governador. No centro duas poltronas, onde sentaram o Governador e a Primeira Dama.

Após o silêncio. O grupo Pirralho anuncia: Os Miseráveis dos Miseráveis. As luzes apagaram e, de um foco de luz ao som de “Pra não dizer que não falei das flores”, música de Geraldo Vandré, surgiu um homem magro de tristeza mansa, digno de pena e um prato vazio nas mãos. Uma pobreza austera, que não o privava de certa elegância.

Sou Farrapos! Príncipe das trevas. Vergonha de nossa terra. Gente do morro e não do asfalto. Sou o pedinte da esquina incorporado à paisagem do contexto bizarro e inexplicável. Vossas Excelências nem notam. Para notarem, teriam de ver a realidade despindo-se das pompas. Teriam que ver com os olhos de um estrangeiro, de alguém que nunca viu algo parecido, como o imperador romano Marco Aurélio, cujos exercícios filosóficos consistiam em ver um prato de comida como o cadáver de um peixe ou de um porco. Vim falar da pobreza, dos feridos, dos feios, dos marginalizados, dos esquecidos, das mazelas, da discriminação. Sou preto, pobre. Meu trabalho não tem glamour, não tem confete, não tem romantismo. Vivo entre os sem prerrogativas de nascimento, sem classe, sem pátria, sem religião, bóia-fria, sem brasões nem escudos de armas relegado ao papel de coadjuvante nos confins dos direitos humanos. Minha casa é nas ruas de Vitória, ironia ou não do destino, Vitória do Espírito Santo. Nas paredes do Carlos Gomes escrevi duas obras: Zé Ninguém é a biografia de meu pai e Minha Miséria é de memórias. Meu pai morreu de fome e minha mãe... – ironizou: o acompanhou no mesmo destino. Não tenho irmãos, graças a providência de Deus! Que destino teriam eles nesses dias de hoje? Poetas de versos homéricos, delirantes e naufragados nos becos da cidade.

Vocês que me olham? O que vêem? Não pareço a sombra de Vossas Excelências? Não, não, claro que não. Não tenho pedigree como dizem os bons comissionados das repartições que fazem carreira com as memórias do papai.

Por alguns instantes aquelas palavras permaneceram no ar do silêncio. Em seguida Farrapos retornou, poetizando:

O preço do Feijão não cabe no poema.

O preço do arroz não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás luz e telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

O funcionário Público

Não cabe no poema

Com seu salário de fome

Sua vida fechada

Em arquivos.

Como não cabe no poema

O operário

Que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

porque o poema, senhores,

está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

O poema, senhores

não fede

nem cheira

Derrepente, roubando a cena intencionalmente em favor do reino, uma odalisca negra, preta pela cor e pelo preconceito, estilo africano, mulher e ex-favelada, agora doméstica nos salões nobres, vociferou em grande estilo:

Volte amanhã seu Farrapos! A sopa acabou.

Como assim, retrucou Farrapos, acometido pela famosa dor de estômago que aflige mais da metade do povo capixaba. A dor da fome que despistamos com uma mistura de farinha com açúcar e um copo de água.

É o que você ouviu. Hoje e nem sei quando teremos mais sopa?

O governador meio sorrindo, meio tremendo, disse:

Impressionante, Helena! Esse homem é culto, bem-falante e simpático. Ele desenterra bordões aleatoriamente para enfeitar sua fala. Não faz citações descontextualizadas. Essa história me parece familiar? Helena para não perder a postura diante dos subordinados, respondeu: - Foi em Roma ou Paris, meu amado Ignácio. Talvez na Revolução? E balbuciando, disse a Zé: O negro tem que provar que é bom para ser respeitado. Se vacilar, vai ter alguém dizendo: está vendo? Tinha que ser negro. Risos disfarçados. Deixando de lado a troca de perguntas sem respostas continuaram a atenção à peça.

Farrapos indignado continua sua fala : Como não sabe da sopa? Eu vi na Praça Costa Pereira um pedaço de jornal da semana passada que aqui haveria sopa pra todo mundo.

Ora, seu Farrapos, papel sem assinatura não vale nada!

Desta feita, Helena tentando despistar os olhares da plateia dirigidos a ela, levantou e começou a bater palmas, o que todos a acompanharam.

Quase gaguejando, balbuciou Ignácio: - Bela saída minha rainha. Você agiu prontamente e acalmou os ânimos de nossos súditos.

Farrapos cabisbaixo afastou-se do foco e tornou a escuridão. Ao meio ao apagão – Zé e Lena resmungaram: Ah... poderia ser um apagão de verdade!

Aos poucos vozes do fundo foram ecoando em sintonia: Queremos sopa! Queremos sopa! Era, mais e mais gente batendo os pratos pedindo a sopa prometida.

Ao fundo surgiu um homem bem vestido aos modelitos palacianos e disse: - Acalmem-se, acalmem-se, a Rainha chama um de vocês para negociar pacificamente. Os famigerados não entendendo nada, perguntavam entre si: negociar sopa? Gritou um deles ao modelito: - Não queremos negociar aos moldes carnavalescos que acabam em mais uma pizza na República. Outro sussurrou: Bem que podiam trocar a sopa por pizza? Dá mais sustância a barriga. Pois, com a falta de água nos acostumamos. Com a falta de luz estamos nos acostumando. A próxima será a falta de ar. Eu vou! Levantou a mão outro esfarrapado. E quem é você, perguntou o modelito? Sou Ninguém. João Ninguém. João Ninguém? Nunca ouvi falar em você, respondeu o modelito. Meu senhor bobo da corte, homem de grande envergadura, qual importância seria me conhecer. Se meu nome fosse Fulano, Sicrano ou Beltrano qualquer coisa, não-sei-que-lá da Silva, não seria a mesma coisa? Alfinetou Ninguém.

O modelito sem graça, não deu ares de fraqueza e, fingindo não ter ouvido nada, respondeu: siga-me, vamos até o Palácio.

O governador de maneira meio enviesada, profundo conhecedor dos finais embaraçosos dos versos do bardo: o pentâmetro jâmbico, não titubeou e quase berrando com goela de Caruso, bravejou, soltando rojões: Excelente, excelente!!! Isso é arte, não um simples aglomerado de corpos. Vocês são a nata da Royal Shakespeare Company! É uma obra prima que merece um lugar de mais destaque. Porisso peço aos senhores meus assessores que reservem o Teatro Carlos Gomes para que um outro dia possamos dar continuidade aos outro atos. A estas palavras os mais envolvidos com a trama levantaram e aplaudiram, dizendo: É assim que se trata a arte! Esse é o verdadeiro homem que o Espírito Santo esperava! Palmas e mais palmas abafaram o salão nobre e camufladamente alguém paradoxalmente anunciou: Senhoras e Senhores, vamos jantar em prol do povo. Vinho, vinho, para todos! E quero os degustados por Robert Parker, arrotou o Governador.

Assim, terminou o primeiro ato catastrófico dos Miseráveis dos Miseráveis, interrompido pela astúcia intelectual e moralismo de fachada do rei.

Estêvão Zizzi
Enviado por Estêvão Zizzi em 07/06/2014
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