LEMBRANÇA V
Ainda lembro-me perfeitamente de ouvir Pedrinho dizer – deus te livre de um mau vizinho – todas as vezes que alguém lhe dava uma esmola.
Nos anos cinquenta ainda não havia os atuais programas de inclusão social e o infeliz que nascia, ou ficava, cego ou paraplégico, se não tivesse boa estrutura familiar, estava condenado à mendicância, como única forma de garantir o seu sustento.
As pessoas daquela época eram mais solidárias, com os muitos pedintes que vinham às portas das casas, em dias certos, para pegar as ofertas, em sua maioria alimentos, e desses contatos surgiam amizades, como aconteceu com Pedrinho e meu avô Alberto.
Pedrinho era paraplégico e, sentado num banco, tocava uma gaitinha para chamar a atenção das pessoas. Todo sábado à tarde, meu avô que gostava muito de charadas, ia para a reunião do Grêmio Charadístico do Norte e parava para conversar um pouco com ele.
Num natal, meu avô deu de presente ao amigo uma gaita de boca nova, de metal brilhante, daquelas com o botão do lado para mudar o tom e uma cadeira de rodas que mandara o filho, meu tio que era da marinha mercante, trazer da Europa.
Nos dias de feira, para aproveitar o fluxo de pessoas que iam e vinham, Pedrinho ficava “estacionado” na calçada da Rua dona Ana Xavier, esquina com a Rua Paula Batista, bem em frente à delegacia de Casa Amarela, tocando na gaita de boca, as músicas de Luiz Gonzaga, para ganhar dos “passantes” as moedas que faziam aquele som característico, quando caíam na lata da embalagem de queijo do reino, em forma de cuia, já sem cor, pelos muitos anos de uso.
Quase toda sexta-feira, quanto terminavam as aulas, eu ia para a casa dos meus avós para passar os deliciosos finais de semana. Ia de ônibus elétrico, que era a sensação do momento, e no sábado, ainda escuro, ia com Evena, a minha tia e madrinha, fazer a feira no entorno do mercado público.
A feira era enorme, assim como a relação das compras que haveríamos de fazer para poder alimentar a família e, durante a semana, todos os animais que eram criados no quintal.
Além do gato Veludo e dos cachorros, Cesar e Nikita, tinha coelho, cutia, tamanduá, jabuti, tartaruga, galinha, pombo, pato, ganso, peru, preá, tatu e jiboia que, semanalmente ganhava um roedor ou um pinto crescidinho, para jantar. Na época da safra de sapoti, vez por outra, a jiboia ganhava um morcego para variar a dieta.
Com o dia já claro, voltávamos para a casa, com os carregadores, equilibrando nas cabeças os dois balaios bem grandes, e eu levava a sacola, para entregar a Pedrinho, com as compras, que meus avós mandavam fazer para ele.
De longe já dava para ouvir a gaita e cada vez que uma moeda caía na cuia ou eu entregava a sacola , ele parava a música e dizia a plenos pulmões – deus te livre de um mau vizinho...
Quase vinte anos depois, eu tive um mau vizinho e, pude então entender o alcance da generosidade contida naquele agradecimento.