Síndrome de fusquinha

      

Estou me sentindo um autêntico fusquinha VW 1300L ano e
modelo 1964, com cinquenta anos de uso! Dizem as más línguas
que de L — luxo — não tem nada, é pé de boi mesmo.
Examinando um desses modelos bem de longe, até que aparenta

bom estado! A motorista, às vezes, reclama de um barulhinho,
um pequeno vazamento, “alto consumo”, uma folga na direção,
falta de conforto, demora em esquentar, mas não vê o tanto de
estrada ruim a que submeteu seu Hércules. Hoje em dia até que
ela dirige bem, mas ele confidencia-me que houve umas barbeiradas
pelo caminho. Ela já esteve a ponto de trocá-lo por um mais novo,
mas na garagem apertada não cabia um carro muito maior, e a
volta em dinheiro iria ser muito grande, e como ela não pretendia
mais fazer grandes viagens, envelheceram juntos, para sorte do
fusquinha, resolveu mantê-lo. Carro velho tem uma vantagem,
pelo menos se conhece os defeitos, é o que a dona alega.
Vez por outra, ele a viu saindo de um táxi novinho, e ficou com
uma dor de maçaneta danada, contudo o álibi o convenceu. Lá se
vão 25 anos com a mesma dona, nunca a deixando na estrada, mas
sendo deixado, algumas vezes, empacado em algum posto. A boia
do tanque, acostumada a agarrar, não permitia saber quanto tempo
de estrada lhe restava. Daí o motivo de algumas multas por ter
chegado em casa fora de hora e não passar no teste do bafômetro.
Acaba de chegar até o topo do morro da grande jornada,
olhando para baixo vê uma estradinha sinuosa, mas não visualiza

o ponto final. O para-brisa não é mais original, teve que ser
trocado, estava muito embaçado e para enxergar de perto estava
uma porcaria. Confessa que não fez uma consulta ao mecânico,
foi experimentando um e outro até encontrar um que ficasse
excelente. Achou um desperdício comprar um de marca, pois
temia ter de fazer várias trocas daí em diante, e ela sempre foi
um pouco muquirana. Mania de pensar no futuro.
A lataria ele jura que ainda está muito boa, nunca bateu de
frente e muito menos levou batida de traseira. Preocupa-o apenas
o mecânico de escapamento, coisa muito delicada que todo fusca
que se preza recusa até comentar. Um para-lama ou outro levou
algumas esbarradinhas, mas nem muita massa plástica foi preciso
nos reparos. Ele jura que quase toda a pintura ainda é original
de fábrica, está um pouco fosca e gasta, e que não é recomendável

polir mais, algumas quinas estão começando dar no fundo.
De agora para frente ele só quer água e sabão, meia-sola e está
passando de bom! Lá por acaso, uma enceradinha, um pretinho
nos pneus, uma varrida no assoalho, um trato nos tapetes e um
jornal do dia sobre eles, de preferência a folha automotiva com
umas belas fotos, mas somente em ocasiões especiais!
A parte de estofamento é quase nova, pois foi colocada uma
capa de cobertura para proteção, evitando assim estragar o estofado
dos bancos. Os freios são “ABS (antigamente brecava sim)”, como
sua trajetória era uma subida, não os forçava muito, acreditava que
era só não deixar pegar uma toada muito ligeira que aguentaria
a descida. Qualquer coisa era só jogar no barranco antes de

despinguelar morro abaixo! Sua direção tem uma pequena folga, ou
melhor, férias, vá lá, aposentadoria precoce mesmo. Os faróis já
não são mais os mesmos, também as noitadas ficaram para trás. Ele
diz que não é conveniente ficar forçando a bateria, se por acaso ela
falhar, é só dar um tranquinho que pega mais que visgo.
Olha que já foi um cobiçado fuscão preto, fez alguns corações
em pedaços. Hoje é que anda meio banzaró. Se o externo não está
aquela maravilha, o motorzinho parece estar muito bem ainda,
meia-vida, basta colocar um óleo lubrificante mais grosso um pouquinho.

Esse papo de já estar queimando óleo 90, ele garante de
pé junto que é só gozação. Quando acelerado na última rotação
pode até aparecer uma falha e o carburador dar uma engasgada
esporadicamente. Coisas da vida. Como ainda está indo em aclive,
um aclive quase plano, acha que tem de ir economizando a má-
quina. Na verdade não está com muita pressa de chegar ao fim da
estrada, qualquer coisa deixa o motor em marcha lenta e joga na
banguela. O escapamento perdeu o miolo, é a falta da consulta
com aquele famoso mecânico de longos dedos, e está roncando
um pouco, diz a dona, mas acho que é desculpa dela para deixá-lo
dormindo apartado na garagem. Sono leve e risco de cochilar
na direção é desculpa para não dirigir madrugada adentro. Ela
também já não tem aquela pegada e os ânimos acalmaram-se.
Vez por outra, cruza com um carro novinho subindo a estrada
na maior disparada, joga poeira em todo mundo e continua como
se eterna fosse a jornada. Infelizmente muitos ficam pelos caminhos
em um acidente imprevisto, ou previstos, alguns nem ferro-velho
aceita, só mesmo São Pedro por não ter muita escolha.
Os pneus já foram recauchutados e se encontram em bom
estado, só não pode passar por cima de bira de cigarro aceso. O
estepe, admite estar careca e a roda meio cambeta, todavia é só para
chegar ao borracheiro mais próximo e fazer a troca se necessário.
Ainda não se acostumou à novidade de pneu sem câmara, apesar
de alguns furos feitos pelos espinhos da jornada, mantém as câmaras

remendadas. Acha que essa novidade é para rodas novas,
até hoje deu certo com câmaras, assim seja.
A caixa de câmbio está bem usada pelas repetidas trocas ao
longo da viagem, contudo, nunca escapou uma marcha, muito
menos a ré, cuja alavanca ainda está bem firme. Quem duvidar
pode vir conferir! Acredita que seja o que tem de melhor no
carrinho! Um pequeno zuadinho que aparece de vez em quando
o mecânico lhe garantiu que é pela idade e não tem a menor importância,

só incomoda os ouvidos, e pode ser que com o tempo
nem venha mais ser escutado.
A suspensão é exigida frequentemente, disse que vai evitar
buracos e pedras para fugir de muitos solavancos, bacadas. A
suspensão nunca foi muita macia nem poderia ser, as estradas
do seu destino lhe reservaram obstáculos quase intransponíveis.
Quebra-molas passou a ser um suplício da modernidade para
minguar a toada dos apressadinhos. Apesar de necessários, lhe
irrita muito, e disse que já passou por uns sem ver, achando que
era só sinalizador. Tem de ficar atento, numa dessas pode acabar
perdendo a rebimboca da parafuseta ou trincando o chapéu de
Napoleão. Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
Peças originais já não existem mais, ainda bem que não tem
nada eletrônico e as peças de antigamente eram reforçadas. Um
rolo de arame juntamente com um bom alicate dá para ir fazendo
uns remendos e seguindo o caminho. Como não foi acostumado
às modernidades, o que vier é lucro, o que serve de consolo é que
tem muito carrinho novo rateando absurdo. Não que ele aprecie a
desgraça dos outros, muito antes pelo contrário, tem três modelitos
novos rodando por aí e desejo que consigam cumprir suas jornadas
com louvor, apesar de dizer que estamos na era do descarte.
Que venha mais asfalto do que estrada esburacada, oficina só
para um check-up decenal, lanterneiro frequentemente são para os
“metro modelos” e que o inferno do ferro-velho fique bem longe.
Resumindo a prosa, ele diz que pode até ser um modelo feio,
fora de moda e beber demais, mas pela idade e o tanto de estradas
ruins já rodadas, não poderia estar em melhor situação. Ficar parado
pelo caminho não é de seu feitio e para baixo todos santos ajudam.
Fé em Deus e pé na tábua!

 

 

Kennedy Pimenta 🌶️