REMINISCÊNCIAS DE UMA PARTIDA.

REMINISCÊNCIAS DE UMA PARTIDA

Naquele último sábado de junho de 1968, eu amanheci triste e ao mesmo tempo eufórico. A tristeza vinha das horas que avizinhavam minha partida da pequena Baturité, cidade onde havia vivido meus últimos três anos e meio, passando da infância à adolescência, e a dor saudade aos poucos ia apertando, por deixar os melhores amigos de infância e Leene, minha namorada.

O dia passou rápido e agitado, com a expectativa de mudança para Fortaleza.

Lá pelas dezenove horas, minha família e a mudança se foram em um pequeno caminhão em busca da capital cearense. Um velho caminhão levou nossos poucos pertences, meus pais com mais oito filhos e a perspectiva de melhores dias de vida.

Fiquei para participar de um concurso de quadrilha junina que se realizaria naquela noite, numa disputa com mais quatro outras concorrentes. Apresentamo-nos perto da meia noite. Fomos o terceiro colocado, causando insatisfação tanto em nós como na plateia.

Encerrada a confusão, cujo resultado permaneceu, continuamos na quadro onde houve o desfile por mais algum tempo. Depois fui deixar a namorada perto de casa, porque o namora era às escondidas.

Embora ainda não fosse a despedida, o momento já era triste, principalmente para ela que tomara conhecimento da minha partida naquela noite. Como éramos praticamente o primeiro namorado um do outro, isso também servia para aumentar nossa tristeza.

O momento era triste repito, porque estávamos ou pensávamos apaixonados e o dia seguinte seria rápido e curto para nós, ou melhor, à noite, porque nos encontraríamos somente na missa da matriz às dezenove horas e juntos permanecíamos no máximo até às vinte e duas.

Ao sair da casa dela naquele sábado de tantas modificações em nossas vidas, fui encontrar-me com dois amigos, Osian e outro que não lembro o nome, para fazer uma serenata de despedida para a Leene.

Naquele tempo, era muito comum, altas horas da noite, ir-se à casa da namorada ou de uma pretensa namorada e se declarar por meio de músicas, dos velhos LPs postos em radiolas portáteis.

Essas recordações emocionam-me neste momento que as escrevo. Não pela namorada em si, - que não vejo há mais de quarenta anos, depois daquela noite a vi somente uma vez -, mas pelo momento daquele dia específico da minha juventude. Momento que jamais voltará, mas que deixou reminiscências eternas e maravilhosas.

Encontramo-nos, eu e meus amigos, como não podia deixar de ser, bebemos alguma coisa, até mesmo para dar coragem, porque sempre havia o temor do dono da casa não gostar e vim tomar satisfações com os seresteiros; o quê não raro acontecia.

Fomos para o Beco do Cacete, sugestivo nome do bairro onde morava minha cinderela. Sentamo-nos na calçada próximo à janela do quarto dela e botamos para rolar os LPs na velha radiola. O mestre de cerimônias, ou melhor, o cantor da noite foi Jerry Adriane. Querida a música mais tocada:

“Querida quero lhe dizer

Que toda minha vida

Entreguei a você

Procure olvidar o que lhe fiz

Querida perdoa

Querida não vá (quem foi fui eu)

Oh querida relembre

Os momentos tão felizes

Que juntinhos passamos

Sob a luz do luar

Diga ao menos meu bem

Que de mim não tem mais rancor

Pra que possa esquecer

Todo meu amargor

Falado

(Oh querida

Você não sabe como eu me sinto

Em não tê-la mais ao meu lado

Minhas noites são tão frias

Minhas horas tão vazias

Mas se voltasse, se você voltasse

Tão feliz eu seria)”

Terminada a serenata, que foi maravilhosa, até porque nunca mais esqueci a letra da música do Jerry Adriane, fui dormir na casa de um vizinho.

No dia seguinte, acordei cedo, e o domingo transcorreu como de costume. Entretanto, havia um porém: não podia sujar a roupa. Na pressa para viajar, meus pais embalaram tudo e me deixaram somente com a roupa do corpo. E até segunda-feira à noite não podia sujá-la, pois só teria como mudar de roupa quando chegasse à nova casa em Fortaleza.

Além da preocupação de não sujar a roupa, tinha que permanecer com aquela roupa ridícula. Uma camisa estampada, com uns babados na região das casas dos botões e nos punhos. Das calças não me lembro bem, mas acho que era branca. Roupa tipicamente matuta. Hoje isso não acontece. Com a televisão não há mais matuto, todo mundo se veste de acordo com a moda ditada. Para os da minha idade, ou para os mais velhos, eu estava parecendo o Mazaropi, artista brasileiro dos filmes de chachadas da Atlântica.

À noite fui encontrar-me com Leene, e ficamos até umas dez horas, quando efetivamente nos despedimos. No dia seguinte, segunda-feira, não houve como falar com ela.

À tarde, embarquei para Fortaleza num ônibus da empresa Redenção, extinta há alguns anos, depois que a Guanabara tomou conta do mercado nacional, no que diz respeito ao transporte rodoviário de passageiros.

Na viagem vinha rezando, coisa que não faço mais. Naquele tempo como tinha medo das coisas lá do Céu, por ter estudado em colégio de padres por quase quatro anos, e também por ter sido educado na Igreja Católica, tendo até mesmo ajudado padres rezar missa em latim, vinha rezando. Rezando para quando chegar à agência de ônibus minha irmã estar me esperando.

Fortaleza não tinha ainda um terminal rodoviário. Os ônibus vindos do interior paravam em agências. A de Baturité ficava na Rua São Paulo esquina com Rua Senador Pompeu. O medo era enorme, por não saber o endereço dos meus pais, e não conhecer Fortaleza, para mim era um terror, cidade imensa, enorme, onde estivera poucas vezes quando muito criança e sempre acompanhado do meu pai. Cidade enorme onde as pessoas se deslocavam de ônibus, de um bairro a outro. Em Baturité tudo era perto, não havia tal necessidade. Andava-se a pé.

O medo era grande de não encontrar minha irmã me esperando. E vinha o pensamento: se ela não estiver lá o que eu vou fazer? A única solução voltar. Não para Baturité, mas para Pacoti, para a casa da minha avó. Quanto mais o ônibus rodava, mais apertado ficava meu coração. Ao entrar em Fortaleza, já perto do Centro estava para ter um infarto. Não enfartei de medo porque era muito novo. Ver aquele monte de lojas todas iluminadas me apavorava.

Finalmente o ônibus chegou à agência. Desci apavorado, quase chorando. Quando dei de cara com minha irmã, veio um alívio incomensurável. Acho que na vida nunca fiquei tão feliz ao ver alguém. Ali estava minha salvação, que me levaria para casa.

Fomos para casa. No trajeto da São Paulo até o Parque da Criança fiquei inebriado, empolgadíssimo com as vitrines. As luzes acesas, mostrando lojas de roupa principalmente e de eletrodomésticos. O Centro de Fortaleza era bonito. Não mal conservado como atualmente.

Em casa só novidades.

A semana foi tranquila, conhecendo o bairro. Um primo, que morava na outra rua, foi o mestre de cerimônias. Portanto, não foi difícil conhecer a meninada das redondezas. Logo já estava enturmado, jogando bola.

No sábado, entretanto, por volta das quinze horas recebemos a triste notícia que minha avó estava muito mal, em Pacoti. Não havia mais como viajar para lá naquele dia, porque o único ônibus saía às dezesseis horas e não havia como chegar à agência a tempo de pegar o ônibus. A solução foi eu ir até Baturité de ônibus, que partia mais tarde, e de lá para Pacoti, de madrugada nos caminhões da feira. Ir a Baturité era tudo que eu queria, porque teria chance de me encontrar com a Leene, aproveitando as poucas horas na cidade.

De madrugara fui para Pacoti, cheguei lá por volta das seis horas da manhã e fui direto para a casa da minha avó, que ficava a uma distância relativamente pequena. No caminho, encontrei minha tia, Eloneida, que me informou o falecimento de minha querida avó, que morrera há bem pouco tempo.

Na casa, como não podia deixar de ser, a tristeza era imensa e a demora foi pouca. Quase imediatamente voltei a Fortaleza para buscar meus pais para o enterro. Meus parentes não sabiam onde era nossa nova residência.

Aquele sábado à noite foi a despedida definitiva de Leene, nunca mais a vi, muito menos meus amigos de serenata. Pouco tempo depois mudei para o Rio de Janeiro e somente voltei a Baturité anos depois.

Notícias dela tive uma única vez. Logo quando mudei de Baturité, ela me mandou um recado, pedindo para encontrá-la na casa da Edna, uma amiga de Baturité que também se mudara para Fortaleza. Entretanto, para tristeza nossa, minha e dela, o portador me deu o recado atrasado, e quando cheguei à casa da Edna, Leene já tinha voltado para Baturité.

Restaram-me apenas reminiscências maravilhosas da Leene, de meus amigos e daquela noite específica. Hoje tão distante, mas ainda tão viva em minha memória.

Prometo, porém que da próxima vez que for a Baturité vou procurar informações sobre eles, pelo menos sobre a Leene e o Osian...

HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO

FORTALEZA, JUNHO/2014