SINA ANTROPOFÁGICA

Realmente, tenho lido muito, comido e regurgitado muitos livros com milhares de páginas novas e amarelecidas, e de todos os tamanhos, nestes mais de quarenta anos de tresloucados exercícios nos reinados da Palavra. Para a minha inquieta cuca, o escritor é uma mansíssima vaca: come, come, rumina e regurgita, rumina e agita-se (batendo a cauda) num longo regurgitar de largos estômagos, e que ainda antes de expelir as sobras, dá o leite da esperança do porvir, especialmente o lirismo do amar derramado nos poros suarentos do bom animal. Alguém já disse que Poesia é para comer e comer sem mastigar... Sina antropofágica de falares, de idiomas antigos e novos, tempo e viveres variegados. E sabes qual é o hálito expelido pelo vacum após toda esta deglutição no campo largo das pastagens? O da Poesia e seu perfume de maçãs silvestres. Como a necessária quota de oxigênio que haurimos todos os dias, e que nos mantém no ócio aparentemente sem esforço, através da dignidade que a Palavra concita e fraterniza. Um convidativo pecado mortal sempre fora e dentro de nós... Que o digam os donos do poder, que reiteradamente sufocam aqueles que forjam a ampliação do grupo dos que não somente pensam, mas agem por e para o coletivo.

– Do livro O CAPITAL DAS HORAS, 2014.

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