Trilha Sonora de Academia
Cada vez compreendo mais a maturidade. Compreendo que meu pai, com seus 96 anos estivesse desistindo de viver. Ele via seus valores se deteriorando e não podia fazer nada.
Senão, vejamos.
Para viver melhor e mais, entrei para uma academia. Sento numa bicicleta que não sai do lugar e a única paisagem que se move, além de bundas malhadas, é a imagem da Ana Maria Braga e do Louro José. Depois, levanto pesos em diversas posições, sem finalidade produtiva, a não ser a de produzir tonicidade muscular. E a trilha sonora costuma ser um baticum hipnótico. Eu e um amigo roqueiro bem que tentamos convencer o professor a enfiar pelo menos um Alice Cooper na programação, mas ele alega que se não for música imbecil o pessoal reclama.
Hoje estava excepcionalmente divertido por causa da trilha sonora da aula de dança. Mulheres de idades diversas praticavam, em outro ambiente, uma estranha coreografia, com a finalidade de acompanhar um ritmo que desconfio ser o que chamam de Axé. A moça que cantava a maravilhosa trilha dizia letras sensíveis de alto nível: “Quero beijar tua boca. Vou me enfiar no céu da tua boca.” Sutil e poético. Vejamos: a rima de boca com boca não é de todo tolinha, uma vez que no beijo as bocas se encostam. Ao querer enfiar-se no céu da boca do parceiro, a composição remete ao famoso beijo de língua, inventado na França, europeu, portanto de excelente qualidade intelectual, como se sabe sobre tudo que vem do Velho Mundo. As mulheres rebolavam e mexiam as mãos como odaliscas modernas, imitando a professora, que as dirigia com pulso firme e determinação. A professora magra vestia, com muita originalidade, uma blusa que lhe deixava ver a barriga, que, notei, no entanto, saliente, apesar da malhação. A música seguinte que coreografaram, falava de querer beijar. Por que ensaiar músicas de beijo sem os parceiros homens? Por que a professora não incitava a criatividade de movimentos e padronizava a dança?
Enfim, essas perguntas passavam pela minha pequena cabeça, enquanto meus ouvidos vibravam ao ribombar dos tambores baianos.
Ana Maria e o Louro José, para quem não sabe apresentadores de um programa matinal na televisão (tenho leitores estrangeiros, ora essa) – este último sendo um papagaio de pano, de gênero duvidoso – mostravam a visita do Papa ao Brasil. Lá vinha o pobre homem numa cristaleira blindada, velho e alquebrado, abanando constantemente para pessoas que ele nunca iria conhecer, sendo consumido por uma multidão de fiéis, ávidos pela sua aproximação, num tratamento de superstar católico.
Ao terminar a aula de Axé, não pude deixar de notar o grande silêncio que se estabeleceu no ambiente. Com o Papa na TV não pude deixar de pensar em Céu e Inferno. Qual será a trilha sonora do Céu? Será realmente a música erudita, como sugeriam as programações de rádio, na minha adolescência, nos dias de finados? Morreu, dá-lhe música clássica? Nesse caso quem quiser ser moderninho, dançar e ouvir Axé deverá ir para o inferno? Faz sentido.
Estava eu quase chegando à conclusão que o tal Axé era a música dos infernos, quando a professora de dança postou-se em frente à televisão e exclamou, comovida: “O Papa está dando a benção!” e cruzou as mãos sobre o peito para ser abençoada. Eu, que estava deitado embaixo da televisão, recebi a tal benção invertida, com o Papa de cabeça para baixo. Vi aí um simbolismo inevitável e compreendi. A professora abençoada escapava. Eu, pecador, estava excomungado! Minha sina seria ir para o inferno, onde iria ouvir Axé para o resto da eternidade. Adeus Beatles, adeus Tom Waits, adeus Ry Cooder, adeus Amadeus, adeus Renato Teixeira, nunca mais Adoniran, nunca mais Pauline Julien, até mais ver Pink Floyd ...
Pensando nessa possibilidade, decidi sair hoje à tarde disposto a comprar um catecismo.
Pode ser que ainda dê tempo.
Credo! T’esconjuro!