A camisa e as chuteiras
No futebol, matar a bola
é um ato de amor.
Armando Nogueira
1. Acabo de receber, de presente, uma camisa da seleção canarinho. Com certeza não a usarei. Nem em homenagem à Copa do Mundo quando até o brasileiro mais desligado sai por aí desfraudando o pavilhão nacional e alardeando o seu patriotismo em incontidos gritos; entusiasmo patriótico, aliás, não muito comum nos dias que correm.
2. Sou um torcedor contido, moderado, não só do time do meu coração, o Vitória da Bahia, como do escrete verde-amarelo.
Mas para não ser indelicado, deixo aqui registrado, publicamente, o meu agradecimento ao vibrante torcedor que me presenteou com a bela camisa da seleção brasileira de futebol, que nem sei dizer se original, ou comprada no camelô do calçadão.
3. Estava a escrever esta simplória crônica, quando alguém, frequentador, com aplaudida assiduidade, dos estádios - hoje indevidamente apelidados de Arena -, perguntou-me por que a seleção brasileira de futebol é também chamada de seleção canarinho; e não me consertem os revisores de plantão: é canarinho e não canarinha.
4. De pronto, confessei-lhe, humildemente, ignorar o porquê desse carinhoso apodo, embora tivesse quase certeza de que "canarinho" viesse da cor amarela da pluma dos nossos canários, os da terra e os belgas, ambos de encantadores e maviosos gorgeios.
5. Curioso, procurei aprofundar-me no assunto. Até descobrir que fora o saudoso locutor esportivo Geraldo José de Almeida, da Rádio Bandeirantes de São Paulo, que dera este apelido à nossa seleção quando, em 1954, o escrete pátrio participou da Copa do Mundo na Suíça, sagrando-se campeã do torneio a Alemanha Ocidental.
6. E aprendi mais: que até 1950, ano da derrota da gloriosa, mas sem sorte, seleção do goleiro Barbosa, a camisa oficial do escrete brasileiro era branca com gola azul.
Depois do fiásco, os donos do futebol brasileiro da época culparam - que bobagem! - o uniforme branco e azul pela dramática derrota do Maracanã.
Promoveram, então, um concurso nacional com o objetivo de mudar a cor da camisa da seleção. Em 1953, o gaúcho Aldyr Garcia Shalee venceu o concurso, e a seleção passou a usar, oficialmente, o uniforme verde-amarelo, ou simplesmente amarelo.
7. Essa história é interessante e bem que podia ser contada aos atletas no momento concentrados na grã-fina Granja Comary, na "europeia" cidade de Teresópolis.
É provável, que, metade (ou mais) do elenco canarinho não saiba por que é amarela a cor da camisa que eles vestem nos gramados, ganhando milhões de reais.
8. E as chuteiras? Elas, hoje, são coloridas e feitas sob medidas, para atender à comodidade e mormente à vaidade dos atletas, em todo o mundo. Noite dessas, vendo pela televisão uma matéria sobre as chuteiras dos nossos jogadores, fiquei abismado com o grau de sofisticação que reveste as sapatilhas dos nossos bailarinos da bola.
9. Aí me perguntei como puderam os atletas doutrora - Gilmar, De Sordi e Beline, Zito, Orlando e Nilton Santo, Garrinha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo - lembrando, como exemplo, a seleção de 1958, campeã do mundo nos campos da Suécia, fazerem tantos e belos gols com as modestas chuteiras da época.
Não raro, e isso é verdadeiro, se tinha notícias de que este ou aquele jogador baixara à enfermaria com calos monstruosos causados por suas rústicas chuteiras.
10. Peço a ajuda do saudoso jornalista Armando Nogueira para terminar bem esta croniqueta, que decidi dedicar aos torcedores pobres deste país. Sem grana para comprar o ingresso, eles não terão acesso às monumentais Arenas, e eu pergunto: cadê o espaço da galera plebeia, "a geral", que os velhos estádios sempre garantiram?
11. Armando Nogueira, na sua coluna Na Grande Área , no Jornal do Brasil de janeiro de 1996, falando sobre as chuteiras, conta o que, sobre elas, ouviu de Didi, o craque da "folha seca". Transcrevo.
"Há muito tempo, Didi me contou uma história bonita que começa na final da Copa de 58. O campo pesado deixou muito barro grudado na sola das chuteiras dele. Decidiu guardá-las assim mesmo, enlameadas. Para ele, as crianças tinham virado troféu. Eram intocáveis. Enfiou-as num saco plástico e enfurnou no canto de um armário. Dias depois, deu saudade, foi revê-las. Numa delas havia um pequeno tufo de grama nascida, certamente, à luz de uma terna amizade."
E completa o maravilhoso cronista Armando: "Pergunto, então, ao craque de hoje: quantas vezes lustrastes, com as próprias mãos, tuas chuteiras? Quantas vezes, no vestiário deserto, te permitiste um olhar fraterno sobre elas. Elas que dão tanta glória a teus pés?"
12. Diria, por último, que as chuteiras têm uma lúdica presença na vida "sentimental" daqueles craques mais abelhudos: as lindas mulheres que, de repente, são atraídas pela saúde financeira desses jogadores não por acaso são chamadas de Marias Chuteiras.
No futebol, matar a bola
é um ato de amor.
Armando Nogueira
1. Acabo de receber, de presente, uma camisa da seleção canarinho. Com certeza não a usarei. Nem em homenagem à Copa do Mundo quando até o brasileiro mais desligado sai por aí desfraudando o pavilhão nacional e alardeando o seu patriotismo em incontidos gritos; entusiasmo patriótico, aliás, não muito comum nos dias que correm.
2. Sou um torcedor contido, moderado, não só do time do meu coração, o Vitória da Bahia, como do escrete verde-amarelo.
Mas para não ser indelicado, deixo aqui registrado, publicamente, o meu agradecimento ao vibrante torcedor que me presenteou com a bela camisa da seleção brasileira de futebol, que nem sei dizer se original, ou comprada no camelô do calçadão.
3. Estava a escrever esta simplória crônica, quando alguém, frequentador, com aplaudida assiduidade, dos estádios - hoje indevidamente apelidados de Arena -, perguntou-me por que a seleção brasileira de futebol é também chamada de seleção canarinho; e não me consertem os revisores de plantão: é canarinho e não canarinha.
4. De pronto, confessei-lhe, humildemente, ignorar o porquê desse carinhoso apodo, embora tivesse quase certeza de que "canarinho" viesse da cor amarela da pluma dos nossos canários, os da terra e os belgas, ambos de encantadores e maviosos gorgeios.
5. Curioso, procurei aprofundar-me no assunto. Até descobrir que fora o saudoso locutor esportivo Geraldo José de Almeida, da Rádio Bandeirantes de São Paulo, que dera este apelido à nossa seleção quando, em 1954, o escrete pátrio participou da Copa do Mundo na Suíça, sagrando-se campeã do torneio a Alemanha Ocidental.
6. E aprendi mais: que até 1950, ano da derrota da gloriosa, mas sem sorte, seleção do goleiro Barbosa, a camisa oficial do escrete brasileiro era branca com gola azul.
Depois do fiásco, os donos do futebol brasileiro da época culparam - que bobagem! - o uniforme branco e azul pela dramática derrota do Maracanã.
Promoveram, então, um concurso nacional com o objetivo de mudar a cor da camisa da seleção. Em 1953, o gaúcho Aldyr Garcia Shalee venceu o concurso, e a seleção passou a usar, oficialmente, o uniforme verde-amarelo, ou simplesmente amarelo.
7. Essa história é interessante e bem que podia ser contada aos atletas no momento concentrados na grã-fina Granja Comary, na "europeia" cidade de Teresópolis.
É provável, que, metade (ou mais) do elenco canarinho não saiba por que é amarela a cor da camisa que eles vestem nos gramados, ganhando milhões de reais.
8. E as chuteiras? Elas, hoje, são coloridas e feitas sob medidas, para atender à comodidade e mormente à vaidade dos atletas, em todo o mundo. Noite dessas, vendo pela televisão uma matéria sobre as chuteiras dos nossos jogadores, fiquei abismado com o grau de sofisticação que reveste as sapatilhas dos nossos bailarinos da bola.
9. Aí me perguntei como puderam os atletas doutrora - Gilmar, De Sordi e Beline, Zito, Orlando e Nilton Santo, Garrinha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo - lembrando, como exemplo, a seleção de 1958, campeã do mundo nos campos da Suécia, fazerem tantos e belos gols com as modestas chuteiras da época.
Não raro, e isso é verdadeiro, se tinha notícias de que este ou aquele jogador baixara à enfermaria com calos monstruosos causados por suas rústicas chuteiras.
10. Peço a ajuda do saudoso jornalista Armando Nogueira para terminar bem esta croniqueta, que decidi dedicar aos torcedores pobres deste país. Sem grana para comprar o ingresso, eles não terão acesso às monumentais Arenas, e eu pergunto: cadê o espaço da galera plebeia, "a geral", que os velhos estádios sempre garantiram?
11. Armando Nogueira, na sua coluna Na Grande Área , no Jornal do Brasil de janeiro de 1996, falando sobre as chuteiras, conta o que, sobre elas, ouviu de Didi, o craque da "folha seca". Transcrevo.
"Há muito tempo, Didi me contou uma história bonita que começa na final da Copa de 58. O campo pesado deixou muito barro grudado na sola das chuteiras dele. Decidiu guardá-las assim mesmo, enlameadas. Para ele, as crianças tinham virado troféu. Eram intocáveis. Enfiou-as num saco plástico e enfurnou no canto de um armário. Dias depois, deu saudade, foi revê-las. Numa delas havia um pequeno tufo de grama nascida, certamente, à luz de uma terna amizade."
E completa o maravilhoso cronista Armando: "Pergunto, então, ao craque de hoje: quantas vezes lustrastes, com as próprias mãos, tuas chuteiras? Quantas vezes, no vestiário deserto, te permitiste um olhar fraterno sobre elas. Elas que dão tanta glória a teus pés?"
12. Diria, por último, que as chuteiras têm uma lúdica presença na vida "sentimental" daqueles craques mais abelhudos: as lindas mulheres que, de repente, são atraídas pela saúde financeira desses jogadores não por acaso são chamadas de Marias Chuteiras.