Audiência das aves
AUDIÊNCIA DAS AVES
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 28.05.14)
Por algum motivo (sempre nebuloso), chegaram à conclusão de que era urgente convocar uma audiência pública das aves. Engenheiros disseram que havia "n + 1" motivos para essa convocação, peritos foram ouvidos, estrategistas foram consultados, videntes foram sondadas, marqueteiros foram inquiridos e a conclusão foi unânime (já que todos estavam do mesmo lado): audiência já!
Antes que algum espírito malévolo aí desse lado do jornal (ou aí desse lado da tela do "smart", do "tablet" ou do "note") destile o veneno habitual da intriga e da maledicência, desde agora manifesto solenemente que este texto nada tem a ver (e seriam assaz insolentes tanto texto como autor caso pretendessem ter) com a "Assembleia das Aves", obra poético-satírica composta por Marcelino Antônio Dutra, um açoriano-madeirense nascido na vila do Ribeirão da Ilha em 1809 (morreu velhinho na mesma Desterro, que o viu nascer, no distante ano de 1869). Um dos talentos desse professor, promotor público, poeta, jornalista, polemista, administrador do primeiro cemitério público da Ilha e vibrante político, que chegou à deputação e à Presidência da Assembleia Provincial, era o de compor epitáfios. Uma dessas suas peculiares composições literárias mais marcantes diz o seguinte: "Aqui jaz / Marcelino Antônio Dutra / Que mil e poucos registrou / E que, no final / Também entrou". Acertou na previsão de que um dia morreria, mas não no vaticínio de que seria enterrado com vista para a futura cabeceira ilhoa da Ponte Hercílio Luz: entregaram seus restos às terras do Ribeirão, seu torrão natal.
Aves são bichos diversos e sua diversidade (assim como qualquer diversidade) tem de ser aceita e, mais ainda, respeitada. Avestruzes e colibris, por exemplo, são igualmente aves, a despeito de porte ou comportamento. Ao tomar conhecimento da convocação (ou convite) para a audiência, o avestruz enfiou a cabeça no primeiro buraco que encontrou (por sorte sua amada esposa encontrava-se fora) e ali ficou, à espera de que tudo passasse e a reunião enfim findasse. Já o beija-flor deu de enfiar bico e língua, longos, até onde não era chamado.
Dada a multiplicidade de espécies, famílias, gêneros e coisas do tipo, o que levava a um tumulto sem fim sempre que se inciava uma discussão (invariavelmente pavorosa e inconclusiva) sobre qualquer assunto, a audiência pública proposta e, de imediato, convocada, visava auscultar a população de penas para saber de suas ideias e preferências a respeito da melhor maneira de voar, consubstanciada no Sistema Ornitológico de Voo, bem como sobre o caminho supostamente ideal para alcançar-se tal intento, expresso nas inúmeras páginas do Plano Ornitológico de Voo, de cujo documento (um documento indiscutivelmente maior) brotariam as metas a fim de que, ao fim e ao cabo, todas as aves, até as galinhas, pudessem alçar voos altaneiros e artísticos, pejados de imenso simbolismo alado.
Foi quando, para surpresa geral, a ave que presidia a memorável sessão (não cá declinaremos seu nome a fim de evitar especulações maldosas), um pássaro de penugens esvoaçantes, o que lhe dava suposta autoridade sobre os demais (além de ele voar, suas penugens também esvoaçavam), agradeceu os relatos de todos os que se manifestaram e deu por encerrada a sessão. Aos protestos que se seguiram dada a brevidade dos trabalhos, argumentou que aquilo era mera audiência, de ouvir, o que o isentava de dar satisfações ou maiores explicações, ou seja, de simplesmente falar e dizer.
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.
Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento