Rompantes
"A primeira sensação que experimento ao encontrar-me na presença de uma criatura humana, por humilde que seja a sua condição, é da igualdade originária da espécie. Uma vez dominado por esta ideia, preocupa-me muito mais do que ser-lhe útil ou agradável, o não ofender nem ao de leve a sua dignidade."
Tocqueville
Esta lembrança pode não ser correta, meu bom amigo leitor. Mas não farei retoques. Tudo ficará ao sabor da velha memória. O que quero dizer é o espanto que me causa certas convicções ou decisões das pessoas. Digo isso porque poucas vezes dei um soco na mesa, e decretei: “isso vai ser assim, está decidido” . Analiso por tantos ângulos, avanço ali, recuo acolá. E eis a hesitação tomando conta de mim. Não que seja propriamente um indeciso, longe disso. Nas horas cruciais soube decidir, bem ou mal, mas decidi.
Ainda não consegui me fazer entender. Eu gostaria mesmo era de escancarar uma decisão assim repentina, de supetão, vocês entendem? A palavra certa, talvez, seja rompante.
Acho que os amigos entenderão quando eu citar um desses rompantes, que tomei conhecimento de minhas leituras.
A do Paulo Francis me parece um exemplo clássico. Vejam bem: estava ele no estribo de um bonde lendo sobre filosofia. Como ele era um homem sofisticado e passeava muito em Copacabana, imagino que o bonde fosse o 13 – Copacabana, via túnel novo.
Pois bem, amigos, vamos imaginar que o bonde trafegava em alta velocidade, entra no túnel novo, no sentido praia de Copacabana. E exatamente na hora em que o condutor, que também andava pelo estribo cobrando a passagem dos passageiros , o nosso Francis teve o rompante dele.
O que se passou foi rápido e o condutor deve ter tomado aquele susto.
Perguntarão os meus leitores: mas qual foi o rompante? Ora, amigos, o rompante foi uma cena teatral magnífica, digna de um final de primeiro ato. Ou até do último ato. O Paulo, simplesmente, depois de apenas meia hora de leitura, chegou à conclusão de que a filosofia, qualquer que ela fosse, não tinha o menor valor, era pura perda de tempo. E o que faz o nosso protagonista? Exclama bem alto: “mas esse livro não vale nada”. Ato contínuo, arremessa o livro pelos ares. Diz ele que abandonou a filosofia ali, naquele momento, com esse gesto triunfal.
Acho isso o máximo. Fantástico. Não sei. É possível que seja uma infantilidade minha, ou um encantamento pelo teatro.
Querem ver outro exemplo? Esse é do Nelson Rodrigues. Era o período do governo do Jango, da revolução cubana. A massa, que não pensa, aderindo ao comunismo e ao ateísmo. Até religiosos, para o espanto de todos, tornavam-se ateus. E aí veio o rompante do Nelson. Como os mais antigos não desconhecem, o nosso dramaturgo inventou nas suas narrativas o famoso terreno baldio e a cabra vadia. Era o cenário ideal para as reflexões dele e as decisões bombásticas. As passeatas se sucediam. Discursos inflamados na Central do Brasil. O pessoal da esquerda levando o Brasil para o ateísmo.
Veio, então, o doce rompante. O Nelson chama o seu melhor amigo, o mineiro Otto Lara Rezende, e os dois vão para o terreno baldio, com a presença da cabra, naturalmente. Era a única testemunha, mastigando a paisagem. Lá, discutem exaustivamente o problema da fé, da religiosidade e do ateísmo. Foi um diálogo altamente intelectualizado. Neste cenário, chegaram a um acordo e fizeram o seu manifesto na marra, assim como quem dá um murro na mesa. Proclamou o Nelson: “ não abrimos mão da nossa alma. Não abrimos mão da nossa imortalidade!”
Já que falei nas passeatas no Rio, não posso deixar de comentar com os amigos e amigas, uma cena engraçada contada pelo mesmo Nelson. O Nelson ficava maluco com os padres que acompanhavam passeata, achava ele que era um desvio revoltante um padre tornar-se revolucionário.
Pois bem, um dia, uma conhecida vira-se para o nosso dramaturgo e diz na bucha: - “Nelson, venha hoje na minha casa, e não pode faltar, teremos a visita de um padre que dará uma palestra. O Nelson, desconfiado, pergunta: mas é padre mesmo ou é padre de passeata?”
O fato é que o escritor acabou indo no apartamento da conhecida, na Gávea. O padre chegou atrasado. A sala repleta de gente. Ao fundo, uma mesa preparada para o conferencista. Nisso, chegando o padre, o Nelson o viu dirigir-se à dona da casa, que lhe entrega um envelope. Era o dinheiro da palestra.
Finalmente, o padre começa a falar sobre a situação do Brasil, algo parecido com o que está acontecendo hoje nos nossos dias. E para espanto de todos, o padre falava e esmurrava a mesa. Ele deu tanto murro, que de repente a mesa partiu ao meio. Foi uma consternação geral na plateia, todos censurando a má educação da mesa.
Eu sei dizer, meus amigos e amigas, que depois dessa o padre encerrou a conversa e foi embora. O Nelson ainda viu o marido da anfitrioa dizendo assim: - “Fulana, eu não disse pra não pagar adiantado? Olha só, ele não falou nem 15 minutos.
Por que estou contando isso? Exatamente porque na nossa época estamos todos querendo dar o nosso rompante.
A história nos mostra que esses rompantes acabam mal e o povo, ao final, é quem mais sofre. Por isso, foi uma alegria ter lido ontem um ensaio sobre democracia do grande Alex Tocquevile. E esse pensamento dele é simplesmente notável: “ Democracia e o Socialismo não têm nada em comum além de uma palavra: igualdade; Mas note a diferença: enquanto a democracia procura a igualdade na liberdade, o socialismo procura igualdade na restrição e servidão.”
Concluo, concluo, amigo leitor. Por que contei essas histórias? Numa entrevista imaginária, me perguntaram: “ficou faltando alguma coisa na sua vida?” Resposta: “ não sei se estou sendo injusto com minha vida, talvez não tenha nada a reclamar. Mas sinto, lá bem no fundo, que um rompante em algum momento da minha história teria me feito mais feliz.” Os que privam da minha intimidade dirão: “mas você deixou de fumar de “estalo” e já faz sete anos, não deixou de ser um rompante.” Sim, sim, concordo. Mas eu queria um ato de maior valentia, sabem? Algo realmente nobre, corajoso, mesmo que dito no quintal da minha casa. Uma decisão madura, sob o império da razão. Já sei! Posso repetir, ao meu modo, o que disse a fantástica Anne Frank: “ Não abandono meus ideais, que parecem tão absurdos e pouco práticos. Não abandono porque acredito, apesar de tudo, na bondade humana.” Acho que agora posso morrer em paz, sem murro na mesa. Daqui a 50 anos...
Nota : Crônica antiga, ampliada para os nossos dias.
Ainda não consegui me fazer entender. Eu gostaria mesmo era de escancarar uma decisão assim repentina, de supetão, vocês entendem? A palavra certa, talvez, seja rompante.
Acho que os amigos entenderão quando eu citar um desses rompantes, que tomei conhecimento de minhas leituras.
A do Paulo Francis me parece um exemplo clássico. Vejam bem: estava ele no estribo de um bonde lendo sobre filosofia. Como ele era um homem sofisticado e passeava muito em Copacabana, imagino que o bonde fosse o 13 – Copacabana, via túnel novo.
Pois bem, amigos, vamos imaginar que o bonde trafegava em alta velocidade, entra no túnel novo, no sentido praia de Copacabana. E exatamente na hora em que o condutor, que também andava pelo estribo cobrando a passagem dos passageiros , o nosso Francis teve o rompante dele.
O que se passou foi rápido e o condutor deve ter tomado aquele susto.
Perguntarão os meus leitores: mas qual foi o rompante? Ora, amigos, o rompante foi uma cena teatral magnífica, digna de um final de primeiro ato. Ou até do último ato. O Paulo, simplesmente, depois de apenas meia hora de leitura, chegou à conclusão de que a filosofia, qualquer que ela fosse, não tinha o menor valor, era pura perda de tempo. E o que faz o nosso protagonista? Exclama bem alto: “mas esse livro não vale nada”. Ato contínuo, arremessa o livro pelos ares. Diz ele que abandonou a filosofia ali, naquele momento, com esse gesto triunfal.
Acho isso o máximo. Fantástico. Não sei. É possível que seja uma infantilidade minha, ou um encantamento pelo teatro.
Querem ver outro exemplo? Esse é do Nelson Rodrigues. Era o período do governo do Jango, da revolução cubana. A massa, que não pensa, aderindo ao comunismo e ao ateísmo. Até religiosos, para o espanto de todos, tornavam-se ateus. E aí veio o rompante do Nelson. Como os mais antigos não desconhecem, o nosso dramaturgo inventou nas suas narrativas o famoso terreno baldio e a cabra vadia. Era o cenário ideal para as reflexões dele e as decisões bombásticas. As passeatas se sucediam. Discursos inflamados na Central do Brasil. O pessoal da esquerda levando o Brasil para o ateísmo.
Veio, então, o doce rompante. O Nelson chama o seu melhor amigo, o mineiro Otto Lara Rezende, e os dois vão para o terreno baldio, com a presença da cabra, naturalmente. Era a única testemunha, mastigando a paisagem. Lá, discutem exaustivamente o problema da fé, da religiosidade e do ateísmo. Foi um diálogo altamente intelectualizado. Neste cenário, chegaram a um acordo e fizeram o seu manifesto na marra, assim como quem dá um murro na mesa. Proclamou o Nelson: “ não abrimos mão da nossa alma. Não abrimos mão da nossa imortalidade!”
Já que falei nas passeatas no Rio, não posso deixar de comentar com os amigos e amigas, uma cena engraçada contada pelo mesmo Nelson. O Nelson ficava maluco com os padres que acompanhavam passeata, achava ele que era um desvio revoltante um padre tornar-se revolucionário.
Pois bem, um dia, uma conhecida vira-se para o nosso dramaturgo e diz na bucha: - “Nelson, venha hoje na minha casa, e não pode faltar, teremos a visita de um padre que dará uma palestra. O Nelson, desconfiado, pergunta: mas é padre mesmo ou é padre de passeata?”
O fato é que o escritor acabou indo no apartamento da conhecida, na Gávea. O padre chegou atrasado. A sala repleta de gente. Ao fundo, uma mesa preparada para o conferencista. Nisso, chegando o padre, o Nelson o viu dirigir-se à dona da casa, que lhe entrega um envelope. Era o dinheiro da palestra.
Finalmente, o padre começa a falar sobre a situação do Brasil, algo parecido com o que está acontecendo hoje nos nossos dias. E para espanto de todos, o padre falava e esmurrava a mesa. Ele deu tanto murro, que de repente a mesa partiu ao meio. Foi uma consternação geral na plateia, todos censurando a má educação da mesa.
Eu sei dizer, meus amigos e amigas, que depois dessa o padre encerrou a conversa e foi embora. O Nelson ainda viu o marido da anfitrioa dizendo assim: - “Fulana, eu não disse pra não pagar adiantado? Olha só, ele não falou nem 15 minutos.
Por que estou contando isso? Exatamente porque na nossa época estamos todos querendo dar o nosso rompante.
A história nos mostra que esses rompantes acabam mal e o povo, ao final, é quem mais sofre. Por isso, foi uma alegria ter lido ontem um ensaio sobre democracia do grande Alex Tocquevile. E esse pensamento dele é simplesmente notável: “ Democracia e o Socialismo não têm nada em comum além de uma palavra: igualdade; Mas note a diferença: enquanto a democracia procura a igualdade na liberdade, o socialismo procura igualdade na restrição e servidão.”
Concluo, concluo, amigo leitor. Por que contei essas histórias? Numa entrevista imaginária, me perguntaram: “ficou faltando alguma coisa na sua vida?” Resposta: “ não sei se estou sendo injusto com minha vida, talvez não tenha nada a reclamar. Mas sinto, lá bem no fundo, que um rompante em algum momento da minha história teria me feito mais feliz.” Os que privam da minha intimidade dirão: “mas você deixou de fumar de “estalo” e já faz sete anos, não deixou de ser um rompante.” Sim, sim, concordo. Mas eu queria um ato de maior valentia, sabem? Algo realmente nobre, corajoso, mesmo que dito no quintal da minha casa. Uma decisão madura, sob o império da razão. Já sei! Posso repetir, ao meu modo, o que disse a fantástica Anne Frank: “ Não abandono meus ideais, que parecem tão absurdos e pouco práticos. Não abandono porque acredito, apesar de tudo, na bondade humana.” Acho que agora posso morrer em paz, sem murro na mesa. Daqui a 50 anos...
Nota : Crônica antiga, ampliada para os nossos dias.