Dona Marina







Nesta manhã  chuvosa,fria de outono,lembrei-me que,já
passaram quarenta e duas primaveras,quando o grande cirurgião cardiovascular Zerbini discursou em minha formatura de medicina!
Na imaturidade própria do jovem formado,exultava-me ao fazer o diagnóstico de doença rara e que poria fim a existência de uma vida,mas,que minha cultura médica era expoente...
Ah!Quão tolo e insensato médico seria,não fosse a ajuda de minhas crianças pacientes...
Imagens passam a minha frente,ainda que desbotadas,mas que guardam em minha mente,com meridiana clareza,as experiências alegres e tristes de seus destinos.
Poderia,enfim,talvez escrever um livro de memórias de minha atuação,porem,narrarei um fato que marcou a minha vida.Aprendi que o médico não deveria se envolver emocionalmente com seus pacientes,para não interferir em sua analise,mas,como? Convivemos com as angustias,sofrimentos físicos,humanos e .com o evolver dos anos,tornamos compassivos.O verdadeiro profissional deve deitar,silenciosamente,suas lágrimas em dobro,quando diante do sofrimento alheio.
Na semana que passou,recebi um comentário,pelo menos,original do grande pediatra Helio Rocha a meu respeito.Dizia ele,com seu modo humorado:”Antonio Carlos,você sempre foi um poeta que brincou como um grande pediatra”.A palavra “grande” debito a sua imensa bondade...
O amigo leitor deve estar,então,pensando:Mas,por que não inicia,logo,a narrativa?
Gostaria,então de lhe dizer,paciente leitor que não falarei de minha atuação como pediatra,mas da experiência de maestro de coral!
Agora,é que o pobre do leitor ameaça abandonar esta crônica,no que me apressarei a dizer do real conteúdo humano.
Há alguns anos,participávamos de um coral chamado “Vox Cordis”que interpretava músicas de domínio público,renascentistas.Na falta de quem regesse,deram-me este castigo!As apresentações começavam com a bela
peça “Amo-te muito”,do barroco mineiro,com sua letra florida,encerrando a mais bela poesia.A canção “Amo-te muito” passou a ser o hino do coral! A cada entrada de novo participante,saudávamos com a singela canção.
Entre as vozes femininas,encontraria a da Dona Marina,a mais idosa do grupo com seus mais de oitenta anos,assídua soprano.Apesar da claudicação devido a artrose avançada,dizia,certa vez:“Se minha perna não quiser vir,que fique em casa,mas,eu irei!”...Tal afirmação,lembrou-me o grande Ramana Maharish que,consumido por um câncer a devastar seus membros,dizia aos devotos:”Eu não sou estes braços!”...
Dona Marina impressionava pelo seu humor,alegria,sorriso permanente nos lábios.Soube que vivia só,em sua casinha e o ‘Vox Cordis’ era sua razão una de viver...
Quis,um dia que o destino a levasse a internação por uma grave doença.
Na condição de médico e responsável pelo grupo,fui fazer-lhe uma visita.
Amigo leitor,se já demonstrava sensibilidade a pequenas coisas da vida,aquela experiência transformou o meu ser...Como disse,uma vez,o grande Jean Claude Nahoun:”Hoje,abandono a medicina!”
Não a medicina insensível dos medalhões,que vibram por seus belos diagnósticos,sem perceber a dor profunda de seu paciente,mas,mais do que nunca,viveria a alegria e a tristeza de minhas crianças adoentadas...
Quando adentrei a seu quarto,vi aquele corpinho enfraquecido,envelhecido,totalmente aprisionado em tubos,cateteres a manter-lhe o sopro vital.
Quando Dona Marina me reconheceu,esforçou-se num sorriso e com extrema dificuldade,começou a cantar,levando suas enrugadas mãos como  que regendo um coro celestial.
“Amo-te muito,como as flores amam”...
Tentei,junto com ela,também cantar,mas,o pranto,dominou-me por inteiro e a Dona Marina interpretou pela sua última vez,aquela canção hino do Vox Cordis.
Deixei o hospital com uma sensação de alivio,paz e saudade,ainda que na presença daquela senhora tão simples...A Dona Marina ensinou-me a viver cada dia como se o último fosse e vibrar com as “coisas’ pequenas.
Obrigado,muito obrigado Dona Marina!