Cordas desafinadas
Aquele dia começa com latidos de cão perfurando meus tímpanos, falta-me vontade de comer, de tomar café, pego o violão, tento me enganar, relaxar, deixo o som das cordas desafinadas invadirem meu ouvido, mas não por muito tempo, pois seria mais um problema pra esta vida já cheia deles, o desafino das cordas. Apesar de tudo ainda consigo sorrir bastante, brinco e me divirto com amigos, família, mas sozinho a decadência retorna. Tento dormir a caminho da faculdade, mas a poltrona do ônibus faz doer minha nuca e faz piorar o dia que já estava nublado e abafado, também se estivesse ensolarado eu o enxergaria nublado do mesmo jeito devido ao meu estado de espírito. Desço do ônibus com a sensação de que fui atropelado dentro dele, corpo doendo e vontade de fugir de mim, impossível, então fiquei quieto no fundo da van que terminaria o trajeto até a universidade. Lá chegando vou direto a palestra, antes de começar discuto com um colega que não me deixa falar nunca, jamais ouve a opinião de outros, o que me irritou profundamente, pois já estava irritado. O seminário começa e só falam do grande Marx, comunismo e capitalismo. Falam de um jeito que me deixa um tanto quanto constrangido, pois parecem dizer que só existem estes dois caminhos. Questionei sobre isto, não me convenceram nem me satisfizeram com seus argumentos, argumentos que já esperava e por isto devia é ter ficado calado. Volto pra van, pro ônibus, tento dormir, não consigo, levanto atropelado novamente. Chego em casa e fico sabendo que os deputados desgraçados aumentaram seus salários, que estavam insatisfeitos com sua remuneração, dizem que é pouco para o tanto que fazem. Já mais puto que o resto do dia, começo a mandar e-mail pra câmara www.camara.gov.br e reclamando com eles, mesmo sabendo que não lerão, mas saberão que tem mais um reclamando. Começo pedir a todos meus amigos para reclamarem também, alguns dizem que sim, outros nada dizem. Refletindo sobre tudo isto começo a descascar uma laranja, devoro-a como fosse carne de político, com voracidade destruo todo seu interior, o suco de laranja tem gosto de sangue, o ódio me consome e nada posso fazer a não ser mascar bagaços, escrevo um texto espontâneo, de desabafo. Coloco no recanto das letras. Desligo o computador, pego o violão, toco com suas cordas desafinadas, me machucam os ouvidos (não tenho afinador nem paciência pra afinar), sinto um nó na garganta, apago a luz e durmo com a certeza de que amanhã será um novo dia, porém com a incerteza de um dia melhor.