DA SÉRIE: VERDADES DO COTIDIANO.

Juro, às vezes, tento fortalecer minha fé no atendimento do funcionário público, mas logo surge um desses verdugos de cartório, que somente com uma caneta consegue impingir as mais dolorosas torturas contra... os desprotegidos contribuintes, e minha crença desaba em céticas ruínas.

Quarta-feira. Compareço ao posto da Inspetoria da Receita Estadual para dar entrada num processo de reconhecimento de isenção de ICMS, o vigilante me aponta o guichê e vou de encontro ao meu destino. Não havia ninguém para me atender, mas uma senhora “quebra-galho” apareceu do nada e me perguntou o que eu desejava. Expliquei a minha demanda e ela me informou sobre a lista de documentos que eu deveria trazer. Ok, voltarei no dia seguinte.

Quinta-feira. Retorno pela segunda vez ao posto da Receita Estadual na Tijuca, caminho até o guichê, encontro um funcionário com pastas abertas e digitando compenetrado.

- É aqui que dou entrada no pedido de isenção de ICMS? – Pergunto.

O funcionário me lança um olhar hostil por cima dos óculos (que logo se transformaria numa expressão de desprezo mesclada com repulsa) e me responde:

- Estou ocupado e tem um senhor na sua frente. Vai ter que aguardar.

O tom foi tão ríspido que só não reagi por que o atendente me lembrou um simpático personagem de desenho animado, o Urso do cabelo duro. Além disso, pressenti que qualquer reclamação poderia ser retaliada com a obrigação de um calvário burocrático que eu preferia evitar. Respondi que aguardaria e me sentei.

Uma hora depois, ele me acena com a mão, era a permissão para que eu me aproximasse. Expliquei o meu caso e estendi a documentação solicitada pela primeira atendente. O Urso do cartório me informa que faltavam documentos, digo que trouxe os documentos que me informaram como necessários no dia anterior, ele pergunta quem me deu a relação e eu deduro a atendente da véspera. O Urso chama pela atendente, mas ela não o atende. Tudo inútil. Ele me passa uma lista complementar a primeira. Novamente, saio frustrado.

Sexta-feira. Terceiro dia, volto ao posto da Receita Estadual. Aproximo-me do guichê e, numa tentativa de transmitir simpatia, pergunto o nome do atendente, o mesmo que me deu a nova lista de documentos.

- Opa, lembrado de mim? Estive ontem aqui. Esqueci foi teu nome? – Introduzo a conversa.

Ele me olha por sobre os óculos sem nenhuma expressão que eu pudesse identificar e responde num murmúrio.

- Anham... Meu nome é Paulo. Vai ter que aguardar.

Sento e espero resignado. Quarenta minutos depois, ele me acena com a mão e corro ao seu encontro como um cão adestrado. Se eu tivesse rabo, não tenho dúvidas que o abanaria. Entrego os documentos. Ele vai ticando tudo com a caneta desconfiada e, ao final, me transmite a trágica notícia.

- Está faltando a xerox da identidade de um dos requerentes.

Senti uma vertigem, um gosto amargo na boca. Contive meus tremores e confirmei que havia trazido a documentação que ele me relacionou. Paulo me volta o olhar gélido que só os que comungam com uma mesa revestida em fórmica sabem transmitir. De repente, quando seus olhos cruzaram com os meus, ele pareceu ter sido tocado por alguma brisa de piedade.

- Bem, como você já veio aqui algumas vezes, vou fazer vista grossa. – Era a minha anistia.

Ele carimba a papelada e me libera afirmando que não poderia dar prazo para a aprovação, pois o sistema estava com problemas. Nada mais importava, saio feliz daquela cova como um torturado que sobrevive ao seu algoz. Um entusiasmo irrefreável me faz ter vontade de cantar "I'm singing in the rain" e caminho lépido como um degenerado que foi perdoado pelos pecados cometidos. No entanto, um pequeno laivo de vingança quer escapar da minha boca e eu deixo que escorra: vai se foder, Paulo.
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 20/05/2014
Reeditado em 21/05/2014
Código do texto: T4813531
Classificação de conteúdo: seguro