Os trens do subúrbio

Nos confins da Líbia, no centro do deserto, um avião ainda bastante primitivo toca o chão a uma velocidade de 270 quilômetros por hora. Dentro dele, o navegador André Prévot e o piloto Antoine de Saint-Exupéry, que ainda não havia escrito o Pequeno Príncipe. Milagrosa-mente sobrevivem à queda, mas agora precisam enfrentar a sede e caminhar muito em busca da salvação. Se fossem sozinhos no mundo, esperariam a morte. Mas os gritos que vão dar as pessoas que esperam por eles são motivos para que não cruzem os braços: é preciso continuar.

Serão quatro dias caminhando, fazendo rastros com os pés para não perder o caminho de volta até o avião, estendendo panos para tentar conseguir alguma gota de orvalho para beber, delirando com miragens, temendo que os olhos se enchessem de luz, último estágio da sede antes do fim, até finalmente encontrar um beduíno que os livrará de uma morte certa.

Aos olhos de Saint-Exupéry, essa agonia era menos amarga do que parece. Afinal, estava em contato com o vento, as estrelas, a noite, a areia e o mar. Lutava com as forças naturais e tinha preocupações de homem. Aquilo fazia parte da sua profissão de camponês do ar e nela encontrava a felicidade. Bem mais amargo era o sofrimento das populações dos trens do subúrbio, homens que pensam que são homens mas estão reduzidos ao uso que deles se faz. Do fundo das cidades operárias, eles desejariam nascer e ser despertados, mas quase não sentem o seu destino.

Nas cidades não há mais vida humana, reconhece o aviador. A prisão não está onde se trabalha com a enxada, mas onde o trabalho da enxada não tem sentido nem liga quem o faz ao resto dos homens. Foi o mundo que se fez deserto e nos deu a sede de encontrar companheiros. Sem a consciência do nosso papel no mundo, mesmo o mais obscuro, não somos felizes, não vivemos em paz e tampouco morremos em paz – o que dá um sentido à vida também o dá à morte, explica o piloto.

Feitas as contas, que luxo é morrer no deserto!

milkau
Enviado por milkau em 19/05/2014
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