Há dezoito anos atrás...
Há dezoito anos estou em estado de graça, completamente encantada por ela. Ela era o ser mais inesperado que poderia surgir na minha vida e se tornou o mais importante dela.
É interessante como o cotidiano nos tira o brilho da intensidade dos sentimentos, a rotina opaca o que sentimos e no dia a dia experimentamos a vida sem festejar os presentes que recebemos. Sorte que inventaram o dia das mães, dos pais, dos namorados... e os aniversários. Hoje é o dela.
Quando ela chegou, tão alvinha, parecia uma boneca de porcelana, dessas que a gente olha e fica tentando descobrir se realmente existem mãos tão delicadas capazes de tal façanha. A bonequinha foi crescendo e cada centímetro, cada quilo a mais eram acompanhados de perto por olhos atentos aos mínimos detalhes que iam desenhando uma pessoa que consegue ser tão delicada como a porcelana e tão intensa como um tsunami. Essa é Maria Clara, delicada e intensa, tudo ao mesmo tempo.
De sua infância, tenho lembranças maravilhosas, como a expressão do seu rostinho quando eu trouxe para ela a primeira coleção de livros. Era um baú com vários livrinhos ilustrados, contos de fada. O baú quando aberto tocava Beethoven e ela ficou encantada. Clarinha tinha pouco mais de um ano e sua paixão pela literatura começava ali. Lembro-me também de uma noite em que ao embalar-me na rede com ela para fazê-la dormir, comecei a contar uma história. Sempre fazia isso. A história daquela noite era a do patinho feio. Quando terminei de contar a história, ela ainda não havia dormido, sempre que isso acontecia eu tinha que voltar e contar a história novamente, e não podia ser outra, tinha que ser a mesma, a história da noite. Então comecei a recontar, mas em dado momento ela fechou os olhos e ficou assim por alguns segundos, imaginei que tivesse dormido e calei-me. Não, ela não dormia. Surpreendentemente, de olhos fechados, ela continuou a história. Ela estava na história. Compreendi a partir daquela noite que Maria Clara tem o dom de se transportar para outro mundo, para um mundo onde a fantasia é realidade.
Maria Clara, quando criança fugia, digamos, ao padrão das meninas de sua idade. Eu adorava vê-la tão sintonizada com os dinossauros. As bonecas sempre ficavam em segundo plano, e muitas vezes em plano nenhum. A infância foi feliz, permeada por mundos paralelos, gigantescos, que só cabiam mesmo em sua imaginação. A adolescência chegou sem muitos conflitos porque chegou na hora certa, sem antecipações, tudo foi vivido a seu tempo, sem pressas nem ausências. E o tempo do preto chegou junto com uma banda de rock. O quarto parecia a sede do fã clube do Tokio Hotel. Tudo muito intenso e preto, muito preto. Quando íamos fazer compras, eu e minha irmã, mãe dela, queríamos fazê-la usar outras cores, mas ela era fiel às suas concepções, e nós ficamos frustradas no início, mas depois nos acostumamos, aceitamos. Tanto que no aniversário da fase negra, adivinhem a cor da blusa que comprei para ela. Essa fase não demorou muito, mas foi vivida intensamente. A adolescência trás junto conflitos e desejos até então não experimentados, vontade de rir e de chorar, vontade de não fazer nada e de fazer tudo, vontade de ser livre, de criar asas. Tantos sentimentos vividos, tantas dúvidas compartilhadas, que já tenho saudade do que ainda vivemos. Se asas tivesse, Clara alcançaria cada pedacinho do planeta e depois descobriria um jeito de ir mais longe e desvendaria outros mistérios.
Já se passaram dezoito anos e os voos estão apenas começando. Um dia sentirei saudade da adolescência como sinto saudade hoje da infância. Ela está indo e uma nova fase já se anuncia. Espero que o mundo dos adultos não afaste o mundo das fantasias. Que a rotina não a impeça de sonhar, que as obrigações não sejam amargas e que a delicadeza continue acompanhando a intensidade. Espero que Maria Clara não esqueça que pode a qualquer momento fechar os olhos e abri-los num mundo só dela.