O palavrão como terapia
A turma que me conhece, pessoalmente, sabe que tive uma educação bastante severa. E sempre procurei seguir essa educação refinada, mas sem frescura, por toda a minha vida. Tanto é assim que praticamente o único palavrão que pronunciava era o famoso “Merda”.
Devo confessar, no entanto, que ultimamente ao ver a televisão e irritado com certos apresentadores, dou algumas “bananas” para eles e solto mesmo alguns palavrões mais quentes. Quando não gosto de certas observações do locutor, quase sempre mentirosas, me irrito e solto um “ah! vá à merda, vá pra "p.q.p” e saio triunfante do meu quarto.
Quem me visse nessa hora, não diria que meus parentes e amigos me estimulavam a ser diplomata, em razão da minha educação.
Mas convenhamos, meus amigos e amigas, tem hora que a hipocrisia da sociedade irrita, e só mesmo um bom palavrão alivia o nosso azedume.
Fiz esse rodeio todo para dizer que me encantei com um conto do meu eterno amigo Artur da Távola. Todos sabem da educação dele, homem fino, chegava a ser requintado, embora um espírito simples.
Não conhecia os contos dele. Caiu-me um que me causou espanto pelo número de palavrões que ele usa.
Ainda não refeito do susto, cheguei à conclusão de que ele fez isso em nome da Arte. Quer dizer: a arte permite esses excessos. E cá pra nós: o pessoal gosta é disso... No entanto, nos dias de hoje, quando matar virou coisa corriqueira, desde o lançamento de vasos sanitários na cabeça das pessoas, até o linchamento nas ruas da cidade, além do prazer que este conto nos dá, considero a mensagem do palavrão uma terapia adequada para os novos tempos.
Não resisto a narrar algumas passagens, literalmente, e outras, ao meu modo, o conto. Era a história de um tal de Dr. Alberto, advogado famoso. Homem sério, enquadrado no sistema, bem formal.
Um belo dia o homem acordou com o diabo no couro e teve um dia diferente. Já ao acordar, espantou a mulher dele. Vejam o diálogo:
- “Até mais, meu bem
- Meu bem? Você não tem vergonha de me chamar de meu bem? Seu bem são suas amigas, o biriba, os dois filhos, nos quais vive grudada enchendo o saco deles. Há quantos anos nos suportamos porque somos cordatos e reprimidos? Sua vida é um horror.”
E o nosso Dr. Alberto, cheio de franquezas, ao chegar no escritório, já foi falando para a jovem secretária para não acreditar nesse mundo podre, no que a secretária logo retrucou: “ logo o senhor, tão fechado, tão dentro do sistema, achei que o senhor me achasse o fim da picada”. - “é porque sou um idiota, incapaz de dizer que acho você linda. Embarcamos na mentira do progresso, do vencer na vida. Gostaria de aprender o mundo com você, de mostrar a você os carinhos que estão guardados nesse corpo endurecido pela neurose. Quero namorar você. Posso ser para você o que babaca nenhum da sua idade será”. – Dr. Alberto! Foram a um motel. Oito e meia da manhã. Há muito tempo o Dr. Alberto não ria tanto. Às onze de volta ao escritório, a secretária-chefe o repreende por ter se atrasado para uma reunião com o Diretor de uma fábrica.
- “Mande o Diretor para a puta que o pariu. Diga que não atendo ladrões. Que procure outro advogado. D. Isolina diga pra ele que enfie os seus milhões no rabo. Não fique me olhando, D. Isolina! Não tenho nada a ver com a sua virgindade, D. Isolina. Vá trepar. Ainda dá tempo. E, pensando bem, a senhora não é ruim de todo. Vá trepar, D. Isolina. Dou folga. Vá ser feliz, D. Isolina, pelo amor de Deus. E não me dê satisfações. Um dia a senhora me agradece.”
E o dia do Dr. Alberto foi todo assim nesse diapasão. Também numa reunião na Faculdade, com o Dr. Piramildo, esculhambou com as faculdades, que querem só faturar. No almoço, e no restaurante chamou todo mundo de garçom, que todo mundo só quer gorjetas, numa alusão à corrupção. À tarde, no Tribunal, arrasou com a Justiça. Que, aliás, agora digo eu, pedindo licença, data vênia, está mesmo uma boa Merda!
Pra encurtar a conversa, queridos amigos e amigas, depois que arrasou com a sociedade como um todo, a mulher chamou um médico, que, afinal, conseguiu aplicar um sossega-leão no Dr. Alberto. E o diagnóstico foi estafa, esgotamento. E o médico ainda concluiu: “também quem aguenta esta vida agitada de hoje?”
O conto é muito maior, peguei a parte mais engraçada. Suspirei aliviado, pois vim para o interior justamente porque já estava estafado, com certeza faria pior que o Dr. Alberto. Se aqui no interior, ainda estou xingando os apresentadores de televisão, imaginem o que estaria fazendo na cidade maravilhosa, com tanta hipocrisia reinante... Estaria matando até passarinho que voasse na minha frente.
Voltemos, pois, aos benditos palavrões de antigamente. O nosso Távola foi clarividente. Não é uma atitude muito católica, mas pode ser a nossa salvação...
NOTA: Republicação, com alterações. A turma do Rio já leu, nos idos de 2011. Mas o tema é tão atual que me pediram a republicação. É um bom "repeteco". É uma gozação, mas serve de alerta para o momento em que vivemos.