A Espiral
Um dia, vindo do nada, como se nada fosse, compreendemos que a nossa vida não será aquilo que sempre desejamos, não será o que sonhámos, apesar de todo o esforço, de todos os sonhos.
Entramos numa espiral de acontecimentos.
Criamos rotinas para garantir que vamos alcançar os objectivos necessários para sermos o que pretendemos da nossa vida.
Percebemos que não seremos o cantor de rock ou o jogador de futebol que faz delirar as multidões. Não seremos o cientista que vai salvar o mundo, nem o pacifista que trará a calma ao planeta.
Um dia, nesse dia, compreendemos que não será assim.
Os objectivos vão-se dissipando no dia a dia.
Vão-se transformando, como se fossem contorcionistas, contorcionistas de circo, contorcionistas de tempo, contorcionistas de salário, de renda de casa, das fraldas do miúdo, de amor, de motivação, contorcionistas de esperança, de felicidade.
Entramos numa espiral vertiginosa que nos faz acreditar de manhã e desistir à noite.
Fazemos a barba e escolhemos a roupa de acordo com a necessidade. Falamos com as pessoas que a situação exige e recolhemo-nos à privacidade de livros e música ou, por último recurso, silêncio.
Explicamos a nossa apatia com a apatia dos outros.
Vivemos mais por dentro do que por fora.
Por dentro, nessa espiral interminável, mantemos os sonhos serenos e tangíveis.
Por fora, fechamos as muralhas e esperamos que ninguém ouse precisar de nós.
Observamos e calamos. Aceitamos a espiral viciosa de ser gente... normal.
Noutro dia, também este vindo do nada, reclamamos, questionamos o absurdo de viver em agonia, em desespero.
Gritamos poemas que nos lembram o que devíamos ser e não somos. Cantamos canções antigas que já não traduzem o que queremos dizer.
Exigimos liberdade.
Exigimos a liberdade de estarmos presos, de termos o direito de estarmos presos ao que não nos traz felicidade.
Mas nesta espiral, nesta necessidade de sermos verdadeiros connosco, aceitamos o que vier, o que for possível. Mais do que isso é impossível. É só uma espiral.
E amanhã será outro dia.
Só mais um dia.
in Amanhã é outro dia - Luanda Antena Comercial
Locução - Paulo Araújo
Crónicas de Victor Amorim Guerra