Um Domingo pra nunca mais
Um Domingo prá Nunca Mais
Ylagam
Aquele era um domingo especial. Tão especial que o sol, sem cerimônia, entrava pela porta escancarada e trazia em si uma luminosidade lavada nas águas das ondas do mar que quebravam a poucos metros da casa.
Essas mesmas ondas que arrastavam pra lá e pra cá a areia branca da praia, deixando atrás de si um rastro de espuma como se fosse o véu de uma noiva enfeitado de algas, atapetando a beira-mar.
Domingo de manhã. Manhã de domingo e de feriado,
dia do trabalhador.
A praia, os coqueiros balouçando ao sabor do vento, o sol, as ondas quebrando indolentes, o céu de um azul tão límpido, parecendo os olhos do filho de Deus que nos acostumamos a ver nas gravuras, faziam o pano de fundo para este domingo especial. Compunham o cenário inenarrável de um amanhecer que se prenunciava radioso. No entanto,curiosamente a praia estava deserta.Onde os pescadores remendando as redes? Pintando seus barcos? Onde a molecada correndo e mergulhando em busca de uma onda para tentar se equilibrar numa pranchinha de isopor. Onde os banhistas? Onde os parceiros de caminhadas saudáveis de todas as manhãs?
Onde teriam se metido todos?
Dentro da casa assobradada o burburinho começara logo cedo. Os preparativos para o almoço logo mais iam adiantados. A cerveja no congelador,os petiscos na bandeja de madeira.Tudo em seu lugar.Era preciso que tudo estivesse pronto e organizado,pois quando o grande evento tivesse inicio,bastaria estender a mão e servir-se.Ninguém iria arredar pé e olhos de diante o televisor.
Dos fundos da casa vinha o bulício próprio dos últimos preparativos pra a festa de logo mais.
Recostada na rede, presa em duas das pilastras em diagonal, na varanda do segundo piso da casa de praia, olhos semicerrados, os pensamentos ainda dormitavam embalados pelo vai e vem da rede que choramingava a cada embalo mais brusco, entoando uma cantinela em uníssono com o murmúrio do mar que sabia, ali às suas costas. Bem ao alcance dos olhos, se se decidisse a abri-los. Abri-los? Pra que? O mar, já o conhecia de cor. Sabia-o lá. O verde azulado de encontro ao azul do céu sem nuvens (céu de brigadeiro como se costuma dizer). Ao longe, na linha do horizonte, velas brancas, tremulando ao vento, estufadas como bochechas infladas, impulsionando para frente às jangadas, corcoveando sobre as ondas, fingindo-se de indomável corcel.
Na varanda, do lado em que me posicionara,teria a visão perfeita do espetáculo. Por enquanto limitava-me a ouvir e adivinhar a emoção que nos tomaria de assalto em poucos minutos. A largada. Meus olhos antes semicerrados agora estavam bem abertos, respiração contida, sentidos atentos em um só ponto, a tela do televisor.
O mar e os ruídos outros, rede, barcos, velas, céu e sol tudo se apagará. Toda a atenção retida em um só ponto. Vermelho, vermelho, verde. E a explosão de alegria e satisfação. “Pole-position”... como sempre.
Em seguida o relaxamento dos músculos foi tomando conta de todos, inclusive de mim mesmo.
A cerveja gelada começou a circular de mão em mão até atingir o seu destino. O ruído característico do arrancar o lacre e tchssssss, aquele escorrer refrescante garganta abaixo. Queijinho no palito, azeitonas, risos, vozes se confundindo num conversar incessante, mas os olhos continuavam fixos na tela do televisor.
A emoção de estar ali, juntinho, apertado naquele bólido, fazendo curvas a 200 km e acelerando nas retas.
280, 300, 320, 360, atingimos quase o máximo em segundo.
Santa tecnologia! Que coloca num “cockpit” espremidos, um país inteiro, com o coração batendo no mesmo compasso do coração do mestre. O coração de um país, batendo como um surdo, marcando o compasso da emoção.
E então numa fração de segundos, numa mesma fração de segundos em que se passa de 200 a 380 kmh, nesta mesma fração de segundos a pista acaba e cresce diante de nós um muro enorme, escuro, antes inexistente e agora postado ali impassível no meio da curva.
Menos que um piscar de olhos e o sonho não existe mais.
Menos que um piscar de olhos e voam pneus, aerofólios...
Um bólido aos pedaços e um mito estendido no chão. Aquela mancha azul estendida no asfalto e tantos outros pontinhos azuis a sua volta. Teria o céu deixado cair gotas do seu azul ali naquela pista?
Não, do céu baixa uma ave enorme, girando sua hélice ao invés de asas e recolhe um orgulho, uma paixão nacional vestido de azul. Alça vôo e leva consigo o coração disparado de um mundo inteiro enquanto orações em todos os idiomas e credos também sobem aos céus.
Passados alguns minutos de estupefação, as conjecturas dão lugar aos atônitos pensamentos de quantos assistiam via-satelite a aquele momento dolorido que mexeu com os sentimentos de todos os adeptos ou não das formulas de correr, viver, vencer, morrer.
Era um domingo especial. Primeiro de Maio. Dia do Trabalhado. Dia de trabalhar a dor. Dor de não vê-lo mais chegar. O braço erguido, servindo de mastro a bandeira nacional tremulando ao vento.
Quase sempre diante da cena, sentia um nó estrangulando a garganta, mistura de orgulho e alegria de ter nascido no mesmo país, falar o mesmo idioma. O coração pinoteando dentro do peito como aquelas jangadas-corcel lá em alto mar, querendo expulsar de dentro de mim todo o excesso de adrenalina acumulada em não sei quantas voltas dadas juntos. E quase sempre a expulsando em forma de lágrimas furtivas.
Era e foi um domingo diferente. As lágrimas rolaram; não furtivas, mas copiosas. Não só dos meus olhos mas dos olhos de milhões no mundo todo.
Foi um domingo pra nunca mais. Um domingo diferente de alguém que saiu de cena em direção a imortalidade.
Fim