Carta do senhor Koulibaly

CARTA DO SENHOR KOULIBALY

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 14.05.14)

Não sei como conseguiu, mas o fato é que o senhor Koulibaly logrou me localizar e entregar-me sua carta. Bem verdade que, nestes tempos de internet abundante e onipresente, sem cabo ou mesmo por celular, fica bem mais fácil encontrar as pessoas - especialmente quando, como no caso, não se trata de carta impressa, em papel, mas de mensagem digital, de via eletrônica. Mas - devo dizer em defesa do senhor Koulibaly - ele não me descobriu aqui através de uma qualquer dessas redes sociais, igualmente abundantes e onipresentes, porém pelo antigo e quase obsoleto sistema de malote eletrônico, pelo qual se precisa saber o nome que o usuário adotou na rede e o sobrenome, ou seja, o provedor de mensagens que ele escolheu ou contratou: o velho "e-mail", de memória quase saudosa.

Internet sem cabo ou mesmo por celular: as pessoas não sabem, ou já esqueceram, que houve tempo, lá nos primórdios, que o acesso se dava por linha discada, de velocidade baixíssima, com os minutos ou impulsos pingando ávidos na conta telefônica e exaurindo sequiosos a conta bancária. Outro dia encontrei um sujeito que se lembrava do ruído característico da conexão telefônica à internet: até hoje ele tem pesadelos vorazes com a "musiquinha" que foi muito explorada nas propagandas da banda larga.

Não deixemos, porém, o nosso homem esperar mais tempo em função dessas digressões todas, afinal o tempo dele vale muito dinheiro, como se verá a seguir.

O senhor Koulibaly é, de fato, "mister" Benjamin Koulibaly, possivelmente um cidadão britânico residente nas cercanias de Londres. É o que dá de deduzir da sua missiva. Curiosamente, no endereço eletrônico pelo qual ele fez contato consta o nome Coulibaly, o que só faz supor que Benjamin seja um sujeito às vezes um pouco atrapalhado. Mas talvez seja um cara simpático. Por exemplo, ele abre sua correspondência chamando-me de "caro amigo", o que não é pouco, convenhamos. O problema da carta de "mister" Koulibaly é que aparenta ser um texto traduzido para o português por algum desses programinhas de baixo nível tecnológico, que verte apenas palavras sem sequer se preocupar em invertê-las para se adequar às normas de estilo do idioma de destino - e produz tamanha salada, em aparência, a partir de um original escrito por quem não sabe escrever (existe este tipo de pessoa mesmo na Grã-Bretanha). Por isso que penso que ele possa ser um sujeito simpático, não dá para ter certeza pela mendicância do texto. Por exemplo, ele começa assim a correspondência que me destina:

"Por favor não ser incomodado em receber esta proposta urgente negócio como você não me conhece, antes, de qualquer maneira, é transação comercial sobre confidencial envolvendo a soma de £3,200,000:00 libras esterlinas (£ 3.2M)".

Ops! Esse valor aí dá cerca de 12 milhões de reais! Uma mega sena acumulada por duas semanas. "Mister" Koulibaly se diz Gerente de Gestão de Valor para o Cliente do Banco HSBC em Londres e sugere que esse dinheiro, parado lá há 10 anos, deve ser ou pode ser meu, e que preciso ajudá-lo a "desviar o quantidade acima mencionado", conforme escreve, para minha conta, pois a lei inglesa obriga o confisco de dinheiro sem movimentação por tanto tempo.

Para possibilitar essa operação, no entanto, o Benjamin propõe me cobrar honorários ou propina de - pasmem, isso na Inglaterra! - 60% do total! Pra mim, assim, restariam menos de cinco milhões! Penso denunciá-lo por cobiça imoderada ao presidente do banco onde ele trabalha.

--

Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento