Perdido em Ceilândia

Pois se Deus resiste aos soberbos, é natural que tenha permitido que eu me perdesse nas ruas de Ceilândia numa dessas raras manhãs de outono no Planalto Central. Confio cegamente na minha capacidade de interpretar mapas e acredito nos letreiros de ônibus como se fossem palavras divinas. Acho desnecessário fazer qualquer pergunta ao cobrador, o que inclusive vem a calhar com o meu temperamento de bicho do mato. Mas chega o momento em que noto uma excessiva demora em chegar ao meu destino e uma curiosa diferença entre o trajeto que o ônibus faz e aquele que eu havia previsto mentalmente. Obrigo-me a perguntar ao cobrador, que evidentemente confirma a minha trapalhada. Indica então o que tenho que fazer e a primeira coisa é descer do ônibus. Assim já me perdi muitas vezes e em muitas cidades, assim me perdi nas ruas de Ceilândia numa dessas raras manhãs de outono.

A pé, tento seguir a indicação do cobrador, mas no meio do caminho fico em dúvida. Decido perguntar e me sugerem um trajeto completamente diferente. Volto um trecho, atravesso ruas, dobro esquinas, torno a perguntar e me dizem que estou longe e devia ter feito tal coisa lá atrás. Ah, sou como uma dessas folhas secas levadas pelo vento para lá e para cá – não pense tal pessoa que receberá alguma coisa do Senhor.

Faço uma ligação, mas o meu amigo ainda demora até descobrir em que parte da cidade eu estou. Diz que vai me buscar e recomenda severamente que eu não me mexa. Estou próximo a uma pracinha e me sento para esperar. O lugar é algum subúrbio e isso me alegra, porque lá as casas ainda se parecem com casas. Há um poema de Drummond sobre a esquálida Ceilândia e seus casebres, filhos da majestade de Brasília. Pergunto-me se não fica por ali o tal lote 14, em frente do qual o João de Santo Cristo marcou aquele terrível duelo com o Jeremias. Ceilândia, seiláondié. Mas meu amigo logo aparece – e eu tento esquecer a humilhação de quem achou que podia fazer tudo sozinho e não conseguiu.

milkau
Enviado por milkau em 15/05/2014
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