Corrente de Agradecimento
Corrente de Agradecimento
Delfina perdeu o marido mês passado. Momentaneamente fica impossível para ela agradecer os muitos trilhões de corpos celestes dos mais variados tipos, todos girando em torno de si mesmos e de outros e se deslocando em velocidades gigantescas, mas aparentando estarem parados.
Delfina tem 32 anos. Seu marido era gerente de um posto de gasolina. O fato aconteceu numa manhã de segunda feira. De tarde seu perfil adquirira o status de viúva, inda que permaneça diarista meio período.
Não será desta feita que ela irá agradecer os átomos, que supomos conhecer e cuja quantidade e diversidade são inimagináveis, todos tirados do nada, e todos mantendo aprisionadas quantidades fabulosas de energia.
No dia seguinte, terça feira, a filha do primo de seu falecido marido deu entrada no HC com uma gripe devastadora. Uma menina de 7 meses.
Nesse dia Delfina esqueceu de agradecer os rios, cujas águas não são salgadas, mas despejam constantemente bilhões e bilhões de litros de água nos oceanos, que são enormes massas de água salgada, e estes continuam sempre salgados, do mesmo jeito, mesmo sem transbordar, apesar de receberem constantemente tanta água.
Delfina estava em casa, prostrada, quando a mulher do primo do seu falecido marido telefonou, pedindo um favor. A menina de 7 meses estava, na verdade, com pneumonia. A mãe teria que ficar no hospital. Seria possível cuidar da filha maior, de 3 anos e meio?
Delfina nem pensou na evaporação, pois é difícil compreender como é que se evapora a mesma quantidade de água que é recebida para que os oceanos se mantenham sempre no mesmo nível.
O marido fora enterrado na quarta, devido aos trâmites. Que ninguém acuse Delfina de não ter dormido bem.
Ela esqueceu de agradecer as folhas das árvores, desde as primeiras que existiram, sem que jamais duas fossem iguais.
De quarta para quinta, Isabel, a menina de 3 anos e meio que ficara sob sua guarda, começou a sentir falta da mãe, que não voltava do hospital.
De madrugada, Delfina nem pensou na célula, essa maravilha que é a unidade estrutural básica dos seres vivos, sendo mesmo um espanto a capacidade, poder e a sabedoria extraordinárias que possui essa coisinha insignificante, que mede apenas milionésimos de centímetro.
Somente na manhã de quinta feira ficou sabendo, pela mãe da menina de 7 meses, que ali apareceu depois de 48 horas de vigília, para dar um beijo na filha mais velha e suplicar aos prantos uma prorrogação. Teria de passar mais uma ou duas noites ao pé da enfermaria, pois a situação não estava boa. Delfina tem dois filhos pequenos, com mais uma criança emprestada são três.
Dias longos, esses, não haveria de ter nessa semana o vislumbre do que ocorre na formação do corpo do humano com os bilhões de células que possui, todas iguais e com a mesma capacidade para formar tudo de um corpo vivo, e mais fantástico ainda, sabendo quando começar e quando parar de fazer isso. Ninguém se pergunta o que aconteceria se cada gene atuasse sem seguir uma orientação, e se expedissem instruções erradas, ou as mesmas repetidamente, e que no lugar das pernas ou das mãos, por exemplo, fizessem ali braços, corações, fígados, ou se fizessem só fígados, ou só pulmões, ou só pernas, ou só braços.
Delfina, às vezes, relembrava o que as câmeras de segurança lhe mostraram, no dia em que seu marido partiu. Ao assistir, não divisou nenhuma legenda no rodapé, externando que um superintelecto mexeu com física, e também com química, matemática e biologia, e que na natureza não existem forças cegas dignas de menção.
Os assaltantes renderam todos, colocando-os deitados de bruços, limparam o caixa e simularam uma partida. Talvez estivessem partindo de fato, mas um deles voltou, passeou um segundo e escolheu justo marido dela para alvejar na têmpora. Então partiu.
Delfina passou esses dias fazendo as tarefas talvez de um modo mais mecânico do que de costume. Em momento algum passou-lhe pela cabeça agradecer as abelhas e todas as formigas, por conseguinte todas as colméias e formigueiros que existem espalhados pelo mundo, sem qualquer comunicação de uns com os outros e, no entanto, em todos eles todos sabem o que fazer e executam suas tarefas.
No sábado, a mulher do primo de seu marido voltou do hospital mais uma vez. A menina de 7 meses ficaria internada outra semana. Nesta noite ela dormiria em casa e o marido faria o turno ao lado do leito. A missa de sétimo dia está marcada para domingo.
Delfina estava vazia de palavras. Fora uma semana estranha. Ao apagar a luz sonhou que estava na Lua e que de lá contemplava a Terra, girando, a toda hora exibindo o mesmo dualismo de tudo nela contido: ser noite e dia a um só tempo.
Esse texto agradece aos que ficam a postos, em especial Maria Delfina e Luiz Djara Leal, cuja obra facilitou sobremaneira a confecção desta crônica.
(Imagem: Joseph Cornell, Constellation , 1953)
Corrente de Agradecimento
Delfina perdeu o marido mês passado. Momentaneamente fica impossível para ela agradecer os muitos trilhões de corpos celestes dos mais variados tipos, todos girando em torno de si mesmos e de outros e se deslocando em velocidades gigantescas, mas aparentando estarem parados.
Delfina tem 32 anos. Seu marido era gerente de um posto de gasolina. O fato aconteceu numa manhã de segunda feira. De tarde seu perfil adquirira o status de viúva, inda que permaneça diarista meio período.
Não será desta feita que ela irá agradecer os átomos, que supomos conhecer e cuja quantidade e diversidade são inimagináveis, todos tirados do nada, e todos mantendo aprisionadas quantidades fabulosas de energia.
No dia seguinte, terça feira, a filha do primo de seu falecido marido deu entrada no HC com uma gripe devastadora. Uma menina de 7 meses.
Nesse dia Delfina esqueceu de agradecer os rios, cujas águas não são salgadas, mas despejam constantemente bilhões e bilhões de litros de água nos oceanos, que são enormes massas de água salgada, e estes continuam sempre salgados, do mesmo jeito, mesmo sem transbordar, apesar de receberem constantemente tanta água.
Delfina estava em casa, prostrada, quando a mulher do primo do seu falecido marido telefonou, pedindo um favor. A menina de 7 meses estava, na verdade, com pneumonia. A mãe teria que ficar no hospital. Seria possível cuidar da filha maior, de 3 anos e meio?
Delfina nem pensou na evaporação, pois é difícil compreender como é que se evapora a mesma quantidade de água que é recebida para que os oceanos se mantenham sempre no mesmo nível.
O marido fora enterrado na quarta, devido aos trâmites. Que ninguém acuse Delfina de não ter dormido bem.
Ela esqueceu de agradecer as folhas das árvores, desde as primeiras que existiram, sem que jamais duas fossem iguais.
De quarta para quinta, Isabel, a menina de 3 anos e meio que ficara sob sua guarda, começou a sentir falta da mãe, que não voltava do hospital.
De madrugada, Delfina nem pensou na célula, essa maravilha que é a unidade estrutural básica dos seres vivos, sendo mesmo um espanto a capacidade, poder e a sabedoria extraordinárias que possui essa coisinha insignificante, que mede apenas milionésimos de centímetro.
Somente na manhã de quinta feira ficou sabendo, pela mãe da menina de 7 meses, que ali apareceu depois de 48 horas de vigília, para dar um beijo na filha mais velha e suplicar aos prantos uma prorrogação. Teria de passar mais uma ou duas noites ao pé da enfermaria, pois a situação não estava boa. Delfina tem dois filhos pequenos, com mais uma criança emprestada são três.
Dias longos, esses, não haveria de ter nessa semana o vislumbre do que ocorre na formação do corpo do humano com os bilhões de células que possui, todas iguais e com a mesma capacidade para formar tudo de um corpo vivo, e mais fantástico ainda, sabendo quando começar e quando parar de fazer isso. Ninguém se pergunta o que aconteceria se cada gene atuasse sem seguir uma orientação, e se expedissem instruções erradas, ou as mesmas repetidamente, e que no lugar das pernas ou das mãos, por exemplo, fizessem ali braços, corações, fígados, ou se fizessem só fígados, ou só pulmões, ou só pernas, ou só braços.
Delfina, às vezes, relembrava o que as câmeras de segurança lhe mostraram, no dia em que seu marido partiu. Ao assistir, não divisou nenhuma legenda no rodapé, externando que um superintelecto mexeu com física, e também com química, matemática e biologia, e que na natureza não existem forças cegas dignas de menção.
Os assaltantes renderam todos, colocando-os deitados de bruços, limparam o caixa e simularam uma partida. Talvez estivessem partindo de fato, mas um deles voltou, passeou um segundo e escolheu justo marido dela para alvejar na têmpora. Então partiu.
Delfina passou esses dias fazendo as tarefas talvez de um modo mais mecânico do que de costume. Em momento algum passou-lhe pela cabeça agradecer as abelhas e todas as formigas, por conseguinte todas as colméias e formigueiros que existem espalhados pelo mundo, sem qualquer comunicação de uns com os outros e, no entanto, em todos eles todos sabem o que fazer e executam suas tarefas.
No sábado, a mulher do primo de seu marido voltou do hospital mais uma vez. A menina de 7 meses ficaria internada outra semana. Nesta noite ela dormiria em casa e o marido faria o turno ao lado do leito. A missa de sétimo dia está marcada para domingo.
Delfina estava vazia de palavras. Fora uma semana estranha. Ao apagar a luz sonhou que estava na Lua e que de lá contemplava a Terra, girando, a toda hora exibindo o mesmo dualismo de tudo nela contido: ser noite e dia a um só tempo.
Esse texto agradece aos que ficam a postos, em especial Maria Delfina e Luiz Djara Leal, cuja obra facilitou sobremaneira a confecção desta crônica.
(Imagem: Joseph Cornell, Constellation , 1953)